sábado, 23 de outubro de 2010

O Discurso Científico Oficial e a Vontade de Verdade




“Hoje em dia, o modelo biomédico é muito mais do que um modelo. Na profissão médica, adquiriu o status de um dogma, e para o grande público está inextricavelmente vinculado ao sistema comum de crenças culturais”  (Capra, 1986: 154)




Inicio este capítulo com dois textos extraídos da página Web da AMBA (Associação Médica Brasileira de Acupuntura) para explicitar um convívio entre conceitos díspares, e inclusive contraditórios, entre o Saber Tradicional da MTC e o Cientificismo ocidental, dentro do mesmo coletivo médico, o qual não pôde abrir mão dos conhecimentos tradicionais e deve, por obrigação com o próprio Conselho, comprovar cientificamente os métodos por ele utilizados.


 “A Acupuntura é a prática fundamental da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), usada há mais de 4000 anos no Oriente e agora difundida no Ocidente. Os fundamentos da Acupuntura têm comprovação científica no Brasil e a prática médica está entre as 50 especialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB) e pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). A técnica se baseia em energias que percorrem o corpo. Esses trajetos, - meridianos ou canais de energia (grifo meu) -, passam pelos órgãos e vísceras e se exteriorizam na pele e estruturas próximas, como, tecido subcutâneo, músculos, tendões e outras. Nos trajetos dos meridianos foram mapeados pontos, que podem ser alcançados por agulhas, permitindo que sejam estimulados ou sedados, conforme o caso, para desbloquear a passagem da energia (grifo meu) e permitir sua circulação e distribuição pelo organismo. Ficará a critério do médico acupunturista selecionar e fazer a combinação dos pontos mais adequados para colocação das agulhas no paciente, de acordo com as desarmonias e características de cada indivíduo.” (Fonte: Corpo Médico da AMBA, página web da AMBA – Associação Médica Brasileira de Acupuntura)
“As agulhas de Acupuntura possuem efeito bioelétrico. O conceito de Energia dos antigos chineses é atualmente compreendido como estímulo das fibras nervosas A-delta e C. Com os conhecimentos dos efeitos da agulha de Acupuntura em  neuroanatomia e neurofisiologia, o mecanismo da ação da Acupuntura tornou-se científico (grifo meu). Hoje, a dor é uma das grandes indicações da Acupuntura. Por meio de determinado aprofundamento da agulha, o médico acupunturista  consegue mandar para o cérebro (Sistema Nervoso Central), um impulso biolelétrico  que bloqueia determinadas áreas e elimina a dor”. (Fonte: Revista Paulista de Acupuntura, página web da AMBA)

Para seguir este estudo, creio pertinente fazer um breve lembrete sobre a história da acupuntura no Brasil, desde quando era considerada uma prática de curandeirismo até seu status atual de especialidade de várias profissões, inclusive da Medicina Oficial. Analisarei, principalmente, como “o mecanismo de ação da acupuntura tornou-se científico” (Revista Paulista de Acupuntura), e por que esta transmutação de uma “panacéia mística” (Nascimento, 1998) à ciência indubitável poderia servir de subsídio para a negação de seus milênios de efetividade e para a exclusão dos profissionais formados em acupuntura tradicional chinesa.



E a acupuntura tornou-se científica...


Na segunda metade da década de 1970, a acupuntura sofria uma importante resistência por parte dos conselhos de medicina, onde era classificada como ‘charlatanismo’ e ‘crendice’. A conjuntura autoritária que marcou esta época colaborou para que a intolerância médica à acupuntura viesse a se traduzir em atos que ameaçaram e por vezes atingiram com prisão e processos criminais alguns acupuntores, particularmente aqueles que não possuíam formação em medicina ocidental. Esta conjuntura apareceu nos jornais da época da seguinte maneira: O Estado de S. Paulo, um jornal da elite sócio-econômica e dirigido a esta mesma elite, trouxe, na virada do qüinqüênio, duas reportagens sobre acupuntura (31.3.1974, 20.12.1975). Utilizando-se de uma linguagem identificada com o discurso científico, estas reportagens continham uma mensagem clara: a acupuntura não é científica, seus resultados devem-se ao ‘efeito placebo’ ou ‘efeito psicológico’, e envolve riscos, ou seja, é perigosa — ‘Cientificamente falando, os relatos da literatura médica chinesa, positivamente, não convencem" e ‘muitos charlatães ainda praticam a arte (acupuntura), potencialmente perigosa, iludindo o público e prejudicando-o”. (Nascimento, 1998)


Este posicionamento, claramente contrário à aceitação da acupuntura, em todas as suas formas, pelo coletivo médico, persistiu durante a década de 80 e “no parecer decorrente do processo de consulta 1588-28/85, aprovado em 1986, o Conselho Federal de Medicina rejeitou novamente a Acupuntura como atividade médica válida, pois consideravam que toda a terapêutica da acupuntura é baseada em princípios energéticos sem nenhuma semelhança real com a medicina ocidental” (A história da acupuntura[1]). Enquanto isso, segundo esta mesma fonte, desde 1981 um curso técnico já havia sido reconhecido pelo MEC em São Paulo e, a partir de 1985, os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais habilitavam, através da resolução COFITTO – 60, seus profissionais para a prática da acupuntura, seguidos pelos Biomédicos.
Finalmente, na década de 90, mais precisamente em 1995, o CFM (Conselho Federal de Medicina) classifica a acupuntura como especialidade médica e inaugura, nas palavras de Nascimento:


 “... a tendência a incorporá-la como uma técnica dentro da lógica e do arsenal terapêutico da medicina ocidental contemporânea. Mais do que isto, inclinava-se a uma apropriação mecânica de aspectos terapêuticos da acupuntura, dentro da lógica médica convencional. Havia uma propensão a não se considerar suficientemente o sistema coerente e integrado de que se origina e faz parte a acupuntura, ou seja, um sistema médico em que homem e natureza são integrados numa perspectiva de macro e microuniversos, e o sujeito humano é entendido em sua integralidade, incluindo-se aí seus aspectos psicobiológicos, sociais e espirituais: ‘A acupuntura — uma técnica milenar chinesa — começa a ser desvendada pela ciência moderna. Conceitos vagos e pouco científicos (...) estão sendo substituídos por explicações anatômicas e fisiológicas’ (Folha de São Paulo, 19.9.1994)” (Nascimento, 1998).



A partir deste ponto, nota-se o início de um processo de racionalização da MTC-acupuntura, e todo o Saber acumulado durante milênios passa a ter um caráter descartável frente às “novas descobertas”, ao mesmo tempo em que os Acupunturistas-médicos (ou acupunturólogos) proclamam que “o mecanismo da ação da Acupuntura tornou-se científico”. Sobre este assunto, Edgar Morin anuncia que “a racionalização consiste em querer encerrar a realidade num sistema coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz este sistema coerente é desviado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão ou aparência” (1990).

Por outro lado, dentro do próprio coletivo médico e do meio científico convencional, continuam a aparecer sérias contestações sobre a cientificidade da acupuntura e inúmeros estudos vão contra à tendência de assumir a acupuntura como cientificamente comprovada, dentro dos ditames biomédicos. Como anuncia o neurofisiologista Renato Sabbatini, pesquisador da UNICAMP:


“... a conclusão é a seguinte: os resultados de pesquisas médicas sobre a acupuntura são contraditórios, e dependem muito da qualidade do estudo e da tendência pessoal dos pesquisadores. Em geral, estudos metodológicos mais bem feitos mostram que a acupuntura não tem nenhum efeito superior ao placebo em dores crônicas das costas, cessação de tabagismo, perda de peso e apetite e doenças reumáticas. Parecem ter algum efeito em dores agudas de dente, dores de cabeça e dores causadas por disfunções da articulação temporo-mandibular, mas não são efeitos fortes (poderiam ser causados por outras coisas além das alegadas pelas bases teóricas alegadas para a acupuntura).” (Sabbatini, 2001)

Já Guido Palmeira, em seu estudo “A Acupuntura no Ocidente”, cita os estudos de Lewith e Patel[2] sobre as pesquisas científicas com metodologia convencional e questiona a necessidade de comprovação científica, a partir desta perspectiva:

“Enquanto a acupuntura tradicional baseia o tratamento no entendimento tradicional da doença, seleciona os pontos a serem picados em função das necessidades individuais dos pacientes e, no curso do tratamento, modifica os pontos utilizados, segundo a variação das necessidades dos doentes, na maioria dos estudos examinados por Patel, os pontos são selecionados com base no diagnóstico da medicina científica. Identifica-se um conjunto de pontos definidos a priori como indicados para a patologia em questão, que serão utilizados à maneira de uma fórmula ou prescrição que não varia de um doente para outro, e que não é modificada durante o tratamento. Considera-se que tais diferenças podem prejudicar, significativamente, os resultados do método tradicional. O mesmo autor chama a atenção para o fato de que a maioria dos ensaios tem como objetivo avaliar os efeitos da acupuntura sobre a dor, embora o principal objetivo da medicina tradicional seja a prevenção da doença e a manutenção da saúde, restando ao tratamento da doença um papel secundário e, ao alívio da dor, uma função apenas complementar; e sugere a ‘utilização de indicadores que possam medir o 'estado de saúde global' dos pacientes, a principal preocupação da terapêutica tradicional.” (Palmeira, 1990)

                 E ainda sobre a recente “descoberta” da cientificidade da acupuntura e suas repercussões na comunidade científica e acadêmica, assim como na população em geral, Nascimento completa:



“Os resultados das pesquisas científicas mencionados nos jornais informam sobre a confirmação da ação da acupuntura sobre a sensação dolorosa, através de explicação em termos neurofisiológicos e bioquímicos. Mas isto representa apenas um início na tentativa de explicar cientificamente os mecanismos de ação da acupuntura. Ainda assim, as respostas produzidas pelo sistema nervoso de acordo com os diferentes pontos escolhidos permanecem um mistério para os pesquisadores. Tenta-se fazer acreditar que às conquistas no campo científico possam corresponder progressos na efetividade terapêutica da acupuntura, o que não é necessariamente verdadeiro. Parece razoável concluir que as novas vinculações institucionais com as ciências biomédicas nas universidades são exibidas para persuadir a opinião pública e os legisladores, explorando assim mais ideológica que academicamente o prestígio da ciência (grifo meu). A aceitação da eficácia da acupuntura, mesmo em sua ação sobre a dor, vem ocorrendo, em larga medida, independentemente do progresso do conhecimento médico sobre os seus mecanismos de ação. A constatação de sua efetividade e eficácia, por parte de pacientes e terapeutas, tem sido, em nosso entendimento, o principal fator a motivar sua adoção e expansão nos serviços e nas instituições de atenção à saúde.” (Nascimento, 1998)



Os mecanismos de ação e a multiplicidade de indicações

                 Uma das prerrogativas para a consolidação da acupuntura médica é justamente seu caráter científico, recentemente “desvendado”, segundo estudos oficiais, por meio de inúmeras pesquisas. Os mecanismos de ação da acupuntura são assim explicitados pela SMBA (Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura):

Pesquisas demonstram que a acupuntura estimula terminações nervosas livres mielinizadas do tipo II e III nos músculos, enviando sinais para o sistema nervoso central, onde são liberados peptídeos endógenos semelhantes à morfina (endorfinas). Estes neurotransmissores causam analgesia bloqueando a propagação dos estímulos dolorosos para o córtex cerebral,e, consequentemente, impedindo sua percepção pelo cérebro. No SNC, o estímulo da acupuntura vai promover a analgesia mediante atuação em três níveis distintos: medular, mesencefálico e hipotalâmico. Neste último, a acupuntura vai ativar o eixo hipotálamo-hipófise, promovendo a liberação de beta-endorfina na corrente sangüínea e no LCR. Por sua vez, a beta-endorfina age sobre diferentes partes do cérebro e medula espinhal de modo a bloquear a passagem do estímulo doloroso. Um dado importante é que a liberação de beta-endorfina está correlacionada numa base equimolar à produção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), já que os dois têm um precursor comum. Assim, para cada mol de beta endorfina produzido, ocorre a liberação de um mol de ACTH, que vai atuar sobre o córtex da supra renal causando a liberação de cortisol. Neste fato, pode estar a explicação para a atuação da acupuntura nos processos inflamatórios da artrite e no broncospasmo associado à asma. O cortisol endógeno é liberado em quantidades muito reduzidas e finamente reguladas evitando assim os efeitos colaterais da terapia com corticóides. A nível do mesencéfalo, são neurônios da substancia cinzenta periaquedutal que vão liberar endorfinas e estimular neurônios do trato descendente dorso lateral para produzir serotonina e norepinefrina, inibindo deste modo o impulso doloroso a nível medular. O terceiro nível de atuação da acupuntura é a medula espinhal, onde interneurônios da substancia gelatinosa liberam dinorfina e bloqueiam o impulso doloroso que se propaga pelas fibras aferentes nociceptivas (página da SMBA, mecanismos de ação da acupuntura)[3].

Dentro desta linha de raciocínio, nota-se que a acupuntura pode ser realmente comprovada - ainda que de maneira inespecífica, se atentamos para a necessidade da escolha precisa de alguns pontos específicos para tratamentos também específicos - pela ciência biomédica, principalmente se seu uso se limitasse à supressão da dor e alívio sintomático dos sintomas. Porém, é de conhecimento geral, inclusive dentro do coletivo de médicos-acupunturistas, que as indicações da acupuntura ultrapassam, e muito, a simples analgesia. Vejamos quais são as indicações desta técnica, segundo os próprios médicos:
“Embora seja indicada para dores, a Acupuntura, como uma especialidade médica, pode tratar uma grande variedade de doenças:
Músculo-esqueléticas – Dores de coluna (dorsalgia, lombalgia) e de joelho, ciática, ombro e cotovelo doloroso, bursite, tendinite, artrite, torcicolo, fibromialgia, dor da articulação temporomandibular (ATM), dor no calcâneo, traumatismos, lesões por esforços repetitivos (LER/DORT).

Digestivas – Gastrite, refluxo gastroesofágico, azia, constipação intestinal, intestino irritável diarréico, enjôos.

Respiratórias – Bronquite, asma, rinite, sinusite.

Neurológicas – Enxaqueca, cefaléias em geral, vertigem e zumbidos, seqüelas de acidente vascular cerebral, paralisias faciais, neuralgia do trigêmeo, dores dentárias, neuralgias intercostais, formigamentos.
Psíquicas – Ansiedade, depressão, insônia, síndrome do pânico, estresse.

Ginecológicas – Tensão pré-menstrual (TPM), distúrbios menstruais, corrimentos genitais, sintomas de menopausa.

Urológicas – Sintomas prostáticos e urinários

Cardiovasculares – Hipertensão arterial, palpitações.

Endócrinas – Obesidade.

Dermatológicas – Urticária, eczemas, psoríase.
Diversas – Tabagismo, gripe e resfriado, aumento da resistência imunitária em geral.
A Acupuntura aplicada por médico assegura que não está sendo tratado apenas o sintoma, mas também as doenças energéticas [grifo meu] que são diagnosticadas e que são a base dos quadros clínicos apresentados pelo paciente.” (Fonte: Corpo médico da AMBA[4])

E sobre a integração dos dois sistemas médicos no ocidente, notável uma vez mais no próprio texto da AMBA (quando o Corpo Médico, mesmo defendendo a acupuntura científica, fala das doenças energéticas - idéia não aceita pela Medicina Convencional), Guido Palmeira escreve:

“Pretender que a eficácia de um saber que, segundo Cai Jing Feng, ‘tem controlado as maiores epidemias de doenças infecciosas na história da China’, deva-se a que a introdução de agulhas, em determinados pontos, tenha como conseqüência a liberação de mediadores bioquímicos que interferem no fenômeno da dor; e que o sucesso obtido pelos chineses com a acupuntura durante dois mil e quinhentos anos de desenvolvimento seja fruto apenas da acumulação de observações empíricas, é fechar os olhos ao saber tradicional, é descaracterizá-lo, é optar por uma 'cegueira etnocêntrica'.(Palmeira,1998)

E completa, de maneira esclarecedora:

“Nos últimos quarenta anos, o oriente desenvolveu novas técnicas terapêuticas, associando o saber milenar com o saber e a técnica ocidentais. Ao ocidente, que não domina o saber tradicional, — ao contrário, o nega — restou a pobre e limitada perspectiva de procurar esclarecer, com seus próprios recursos teóricos, os mecanismos de ação e os efeitos de uma técnica oriental isolada em uma situação específica, a dor. No ocidente, a procura da cientificidade da acupuntura, ao contrário de esclarecer (ou legitimar) o saber que lhe dá sentido, tem sido a busca da confirmação da hegemonia da ciência médica, a possibilidade de fazê-la capaz de explicar os efeitos até então enigmáticos das agulhas.” (Palmeira, 1998)

Neste ponto, acho relevante a inserção da idéia de Vontade de Verdade, nos moldes propostos por Foucault (1996), para discutir o uso do selo científico como passaporte para o exercício de poder e para a construção do sistema de exclusão.


“[...] as grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como conseqüências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade. [...] Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas [...] enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade- uma espécie de pressão e como que um poder de coerção” (Foucault, 1996).


Trecho da Dissertação para conclusão do bacharelado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia da UnB.


[1] Trecho retirado da página www.acupunturabrasil.org
[2] LEWITH, G. T. — Can we assess the effects of acupuncture? British Medical Journal, Vol. 288, 19, may, 1984.  PATEL, M.S. — Problems in the evaluation of alternative medicine, Soc. Sci. Med., (25) 6, 1987.   

[3] As palavras em negrito são de minha responsabilidade.
[4] Texto retirado da página web da AMBA (Associação Médica Brasileira de Acupuntura).