Autonomia



O Reconhecimento Autêntico da Acupuntura


“A inteligência parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista, quebra o complexo do mundo, produz fragmentos, fraciona os problemas, separa o que é ligado, unidimensionaliza o multidimensional.” Edgar Morin



Neste momento de encontros e desencontros entre as categorias profissionais envolvidas no processo de regulamentação da Acupuntura – Medicina Chinesa, escrevo este artigo com a intenção de aprofundar a discussão e de fazer chegar às pessoas interessadas nesse processo uma das versões possíveis. Pretendo, com o presente texto, demonstrar como é necessária a discussão e, para tanto, faço minhas as palavras do filósofo peruano Fidel Tubino Arias-Schreiber para enfatizar a necessidade de uma valorização do Saber da Medicina Chinesa em sua plenitude para fazer emergir um reconhecimento autêntico, fruto da experiência do encontro com essa forma peculiar de entender a saúde e a doença, tão diferente da perpetuada pelas profissões da Área de Saúde ocidentais. Arias-Schreiber, em seu “Interculturalizando o Multiculturalismo”, profere o seguinte:

“O reconhecimento é mais que a tolerância positiva. Reconhecer o outro em sua alteridade radical é mais que respeitar suas diferenças e percebê-lo a partir de sua percepção do mundo. Reconhecer o Outro é respeitar sua autonomia, é percebê-lo como valioso. Mas a valorização a priori do outro é um falso reconhecimento. [...] O verdadeiro reconhecimento é a posteriori. Nasce da experiência do encontro com o Outro. Mas somente é possível em relações autenticamente simétricas e livres de coação. O verdadeiro reconhecimento pressupõe uma atitude reflexiva em relação a nós mesmos, uma objetivação de nossa maneira de entender e valorizar o mundo.[...] Permite-nos liberar do etnocentrismo acrítico que impede a abertura ao outro e a valorização das diferenças. A valorização a posteriori do diferente é o reconhecimento autêntico.” (Arias-Schreiber, 2005:189-190, tradução livre)

Nessa direção, tentarei esclarecer, ainda que de maneira breve, alguns pontos relevantes da discussão que circunda os Projetos de Lei para regulamentação da Acupuntura/ MC, em tramitação no Congresso Nacional. Em primeiro lugar, defendo a autonomia da Acupuntura/ MC – junto com muitos profissionais conhecedores dessa ciência e isentos de interesses escusos – pela sua evidente coerência teórica, pela sua eficácia prática comprovada (até mesmo por uma metodologia cartesiana limitada) e pela independência de seus ensinamentos, maturados durante milênios e amplamente documentados em vasta literatura. Também pela sintonia desse Saber com a vanguarda da Ciência ocidental, a qual corrobora o caráter científico da Medicina Chinesa, com sua racionalidade própria, independente das tentativas etnocêntricas e interesseiras de fazê-la inteligível dentro dos marcos teóricos predeterminados pelas “biociências”. Edgar Morin, por exemplo, lembra-nos de que há “na história da filosofia ocidental e oriental, numerosos elementos e premissas de um pensamento da complexidade. Desde a Antigüidade, o pensamento chinês funda-se sobre a relação dialógica (complementar e antagônica) entre o yin e o yang e, segundo Lao Tsé, a união dos contrários caracteriza a realidade” (Morin, 2000). O próprio texto da Portaria 971, a qual implementa a acupuntura-MTC no SUS praticada somente pelos chamados “especialistas”, a define assim, comprovando a ambigüidade que paira sobre este assunto: “A Medicina Tradicional Chinesa caracteriza-se por um sistema médico integral (grifo meu), originado há milhares de anos na China”.
 
Um segundo ponto, não menos importante, diz respeito a esta tentativa de reduzir o Saber Complexo da Acupuntura/ MC a uma técnica singela de combate à dor (única explicação aceita para seus mecanismos de ação, segundo os ditames ocidentais – ainda que de maneira inespecífica, como se os pontos de acupuntura pudessem ser escolhidos no tratamento sem um critério meticuloso, muito se distanciando da realidade terapêutica chinesa) ou ao serviço das diferentes profissões que reconhecem, dentro de seus conselhos, a Acupuntura como “especialidade”, quando é sabido que existe por trás desta “técnica” um arsenal teórico independente e autônomo, de caráter transdisciplinar - por contemplar o ser humano em toda sua complexidade, não separando corpo-mente-espírito, e com uma rede de informações coesas que corroboram dita inseparabilidade. 

Já sobre as especialidades em Acupuntura - uma aberração, a partir do ponto de vista da Medicina Chinesa, a qual não pode conceber o estudo do ser de maneira fragmentada - muitos são os argumentos que desmontam esta possibilidade: 1. como já comentado em outras oportunidades, a inclusão da especialidade em acupuntura, por diferentes conselhos, somente vêm a confirmar a óbvia grandiosidade da Acupuntura/ MC, a qual deveria ser, portanto, uma profissão independente; 2. o aprendizado da MC deve passar por uma nova e exaustiva formação, independente das já existentes, que passa pelo desenvolvimento de uma nova percepção sobre a vida e seus mecanismos; 3. os conselhos não deveriam aceitar a especialidade em Acupuntura por se tratar de uma “técnica” sem validade científica, segundo os critérios metodológicos dos próprios conselhos; 4. os mecanismos de ação da acupuntura são desconhecidos pela ciência convencional (portanto não-científicos) e esta nova certeza científica (que ocupa o lugar do ceticismo e da desconfiança que pairavam sobre a acupuntura nas últimas décadas) parece forjada para atender aos anseios dos grupos interessados. Sobre os dois últimos tópicos, recorro ao neurofisiologista Renato Sabbatini, pesquisador da UNICAMP:

“... a conclusão é a seguinte: os resultados de pesquisas médicas sobre a acupuntura são contraditórios, e dependem muito da qualidade do estudo e da tendência pessoal dos pesquisadores. Em geral, estudos metodológicos mais bem feitos mostram que a acupuntura não tem nenhum efeito superior ao placebo em dores crônicas das costas, cessação de tabagismo, perda de peso e apetite e doenças reumáticas. Parecem ter algum efeito em dores agudas de dente, dores de cabeça e dores causadas por disfunções da articulação temporo-mandibular, mas não são efeitos fortes (poderiam ser causados por outras coisas além das alegadas pelas bases teóricas alegadas para a acupuntura).” (Sabbatini, 2001)

Ainda nesse campo, acho importante ressaltar a ambigüidade que nasce da necessidade de comprovação científica da acupuntura, a partir do prisma ocidental, para que seja aceita como especialidade. Por um lado, os mecanismos de analgesia são amplamente divulgados como dados científicos (ainda que processados de maneira inespecífica, ou seja, qualquer ponto poderia gerar tal resposta no organismo) e, por outro, uma infinidade de indicações é celebrada, sem qualquer comprovação aceita (como no trecho do artigo supracitado). Ainda neste tópico, para os iniciados em Acupuntura/ MC, por outro lado, fica evidente a coerência de seus postulados e a especificidade de suas condutas, direcionadas a partir de uma metodologia de diagnóstico complexa, na busca de Padrões de Desarmonia dinâmicos (com a leitura da interação entre os vários sinais e sintomas que se apresentam em um momento dado) e na consequente eleição de combinações de pontos criteriosamente escolhidas dentro da lógica própria da MC.

Já a caminho da finalização do presente artigo, - com lástima, pela quantidade de informações que ficam de fora - saliento que o importante em todas estas considerações é que fique aberto o diálogo democrático e que esse grandioso Saber seja realmente levado a sério, sem as amarras das certezas científicas pré-moldadas e com as armas do verdadeiro espírito investigativo – tão caro ao cientista da Medicina Chinesa, ou seja, às pessoas comuns atentas às suas mudanças e oscilações, às demandas pessoais, às suas interações com o meio, aos alimentos e suas adequações e com a inata espiritualidade de cada um, em uma rica dança transdisciplinar. Assim sendo, deixo a esperança de que seja efetivada uma aproximação verdadeira de nossos profissionais da Saúde e de nossos legisladores com a Ciência da Acupuntura/ MC, essa rica fonte para o entendimento da vida e de seus sutis mecanismos, para que, deste modo, nasça o respeito por sua autonomia e a devida valorização de seus nobres fundamentos.



ARIAS-SCHREIBER, Fidel Tubino. Interculturalizando el Multiculturalismo. Lima: Fundación CIDOB, 2005.
MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In: Francisco Menezes Martins e Juremir Machado da Silva (org), Para navegar no século XXI. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs. 2000.
SABBATINI, Renato. Acupuntura funciona? Correio Popular, Campinas, (25/7/2001 e 3/8/2001).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário será respondido assim que possível...

grato pela participação