Conciliação



O Saber Tradicional da Medicina Chinesa e a Ciência Convencional no Brasil



Em um momento de profundas discussões, envolvendo campos diversos da Saúde, da Política e das Humanidades, sobre os rumos do exercício da Medicina Chinesa (acupuntura) no Brasil, decorrente, em grande parte, da entrada em vigor da Portaria 971, a qual implanta o exercício da MTC[1]-acupuntura em caráter multiprofissional no SUS (Sistema Único de Saúde), creio pertinente adentrar com maior profundidade neste tema e tentar, por meio de um estudo antropológico e transdisciplinar[2], elucidar os embates e práticas discursivas dos agentes implicados e, mais enfaticamente, os mecanismos da política de exclusão defendida e explicitada pelas Associações Médicas brasileiras (Conselho Federal de Medicina, Conselhos Regionais de Medicina, Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, entre outras), assim como, ainda que em menor medida e com uma aparência mais sutil e democrática, pelos Conselhos das profissões da Área de Saúde que reconhecem a acupuntura como uma especialização dentro de seu campo específico de atuação.

Neste contexto, pretendo revisar o discurso médico nas últimas décadas no que diz respeito às posições deste coletivo em relação à acupuntura, as quais mudaram consistentemente. Principalmente o processo de transição de uma posição de ceticismo total à outra de comprovação científica irrevogável. Aqui pararemos a analisar as possíveis contradições nos argumentos que comprovam a eficácia da acupuntura desde uma perspectiva biomédica, já que os mesmos documentos que elucidam o uso desta técnica [3] para uma gama enorme de enfermidades, apenas conseguem citar a comprovação de seus mecanismos de supressão da dor, reforçando meu argumento da construção de uma “Verdade” pelo coletivo médico, nos moldes propostos por Michel Foucault em “A Ordem do Discurso” (1971-1996).

Um dado importante nesta discussão diz respeito às posições antagônicas dentro do coletivo médico, já que existem também vários estudos científicos oficiais que enfatizam o mecanismo “placebo” de ação da acupuntura, os quais negam a eficácia comprovada desta terapia a partir da concepção convencional de fazer ciência - como o artigo do neurofisiologista Renato Sabbatini (2001). 

Outro ponto que pretendo abordar são as propostas que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado que visam à regulamentação da profissão de acupunturista, em especial a PLS 00480/2003 (ver anexo 4) da Senadora Fátima Cleide  e o projeto de lei PL 1549/2003 do deputado federal Celso Russomanno.
Outra questão importante, de ordem epistemológica[4], diz respeito à minha formação pessoal em Medicina Tradicional Chinesa e meu passado de estudante de Medicina Convencional (curso este que abandonei durante o terceiro ano da graduação), os quais me colocam obrigatoriamente no lugar de sujeito comprometido com o objeto, dotado de uma identidade estratégica e posicional[5] - e assim, como o objeto, “sujeitos a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação” (Hall, Identidade e Diferença, pg. 108) – e exercendo uma pesquisa em forma de colaboração e baseada na cumplicidade[6], além de imersa em um estado de ambigüidade[7] profunda.

Seguindo o desenvolvimento deste resumo, pretendo com este trabalho expor esta ampla discussão, a qual se perde na história da acupuntura no Brasil, com foco especial nos embates entre distintas áreas interessadas na regulamentação desta profissão – seja como especialidade médica exclusiva, seja multidisciplinar, ou ainda, como uma carreira independente das outras profissões – suscitados com a aprovação da Portaria 971, e que já se arrastam por décadas, ainda que com roupagens distintas[8].  

De um lado, com uma concepção mecanicista/determinista que considera os fenômenos vivos a partir de uma causalidade linear e separou a cultura humanista e a cultura científica (como diria Edgar Morin, em “Sobre a Reforma Universitária”), está a Medicina Convencional e sua racionalidade biomédica, a qual exige que a acupuntura seja “exercida por profissionais com o devido treinamento e competência, com a formação adequada para diagnosticar doenças e tratar pacientes, ou seja, por médicos[9]” e proclama que a acupuntura é científica - ainda que seus mecanismos bioquímicos de ação sejam, todavia, obscuros, tendo-se em conta a amplitude de tratamentos recomendados pela OMS com o uso de acupuntura, e este será um tema bastante recorrente neste estudo. De outro lado, as demais profissões da área de saúde (psicologia, farmácia, fisioterapia e terapia ocupacional, biomedicina, educação física e enfermagem), beneficiadas com a medida de caráter multidisciplinar (as quais também se inserem no contexto biomédico de explicação da eficácia da acupuntura, no entanto assumem uma posição subalterna[10] - os chamados não-médicos pelo coletivo médico - na hierarquia de profissões). E situada em outro lócus distinto dos dois anteriores, exercendo sua marginalidade, se encontra a acupuntura tradicional chinesa, a qual clama pelo reconhecimento simplesmente, o que pressupõe relações simétricas e livres de coação, que vão além de uma tolerância positiva[11] (este coletivo parece ser ainda bastante disperso, contando com profissionais com títulos estrangeiros, acupunturistas técnicos, terapeutas holísticos, terapeutas naturistas, entre outros). Neste ponto específico, pretendo discutir as diferentes Identidades envolvidas neste processo e, por meio das vozes de Castells e Arias-Schreiber, desenvolver uma discussão sobre este conflito de Identidades, no capítulo 4.
Outra idéia que pretendo desenvolver passa pela noção da “troca impossível”, desenvolvida por Jean Baudrillard. Neste contexto, faço aqui um empréstimo da idéia de “não-equivalência” (Baudrillard, 2002:10) e a transporto para o presente trabalho, para aplicar a equivalência impossível entre dois sistemas médicos sustentados por paradigmas tão díspares quanto às culturas e formas de pensar onde foram gerados. Do lado da Medicina Tradicional Chinesa, em sua teoria fundamental coexistem níveis de Realidade[12] (Barasab Nicolescu, 2003) e níveis de percepção destas realidades, justamente por haver intrinsecamente zonas de não-resistência a esta percepção (o terceiro secretamente incluído poderia ser aqui comparado à idéia do Tao, lugar/não-lugar onde se celebra a unificação).  Do lado da Medicina Convencional, é sabido que o paradigma mecanicista rege sua racionalidade científica; nas palavras de Maria Beatriz Lisboa Guimarães[13]:

 “é assim que a prática adotada pela biomedicina reflete a concepção da ciência hegemônica na nossa sociedade, em que as patologias e a etiologia das doenças são dadas como conceitos fixos e imutáveis, sendo colocados num nível abstrato/superior. Isto faz com que a ação do médico fique submetida e reduzida à interpretação destes conceitos, nada importando, neste caso, exceto o conhecimento intelectual que o médico tem das patologias e sua capacidade em acertar o diagnóstico, que é mediado por toda uma gama de exames complementares”. (Guimarães, 2001)


Introdução da Dissertação para conclusão do programa de graduação em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia da Universidade de Brasília - UnB.



[1] MTC será a abreviação aqui utilizada para Medicina Tradicional Chinesa. O termo tradicional, no contexto chinês, não diz respeito a algo estanque e preso no passado; pelo contrário, no cerne do pensamento taoísta, a regra é a mutação.
[2] Transdisciplinar no termo tomado de empréstimo por Nicolescu, originalmente usado por Jean Piaget., “diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina”. E ainda, estudo que se “interessa pela dinâmica engendrada pela ação de vários níveis de Realidade ao mesmo tempo”.
[3] No contexto da Acupuntura Médica, creio acertado o uso do termo técnica, o qual não utilizaria quando inserida na Ciência Médica Chinesa.
[4] “[...] a epistemologia tem a necessidade de encontrar um ponto de vista que possa considerar o nosso próprio conhecimento como objeto de conhecimento, quer dizer, um meta-ponto de vista, como no caso em que uma metalinguagem se constitui para considerar a linguagem tornada objeto [...]”. Edgar Morin
[5] Stuart Hall, em “Quem precisa de identidade?” (pág.108). A questão das Identidades será discutida no capítulo 5.
[6] “O Intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia”, George E. Marcus. O conceito de cumplicidade como definidor da relação nuclear de colaboração em pesquisa de campo, de que sempre dependeram as pretensões de autoridade do conhecimento etnográfico.
[7] Idem. Neste trabalho, Marcus defende a reflexividade crítica em sua forma antropológica, ao mesmo tempo que enfatiza a dimensão inevitável, e inclusive desejável, da persistência do propósito realista (nos moldes de Malinowski) na construção etnográfica.
[8] Analisaremos no capítulo 2 a história da acupuntura no Brasil.
[9] nota da Associação Médica Brasileira (AMB): Portaria 971 traz riscos de colapso e de mortes de pacientes no SUS.
[10] Uso o conceito subalternidade para designar certa hierarquia nas profissões da saúde, gerada pela suposta superioridade médica frente aos outros profissionais, perpetuada no imaginário destes mesmos profissionais, e pela tentativa do coletivo médico de forçar esta superioridade como explícito pelo chamado projeto do “Ato Médico”, que em sua formatação original deixava clara essa hierarquia. Sendo assim, tomo de empréstimo as palavras de Homi Bhabha, e as aplico no presente contexto: “O movimento anti-dialético da instância subalterna subverte qualquer ordenação, binária ou negadora, de poder e signo; ele adia o objeto do olhar (...) e o dota de um impulso estratégico” (pág. 91) . É notável aqui também que o “outro deve ser visto como a negação necessária de uma identidade primordial (...) que introduz o sistema de diferenciação” (pág. 86), designado aqui como não-médico.
[11] Interculturalizando el multiculturalismo, Fidel Tubino Arias-Schreiber, pág. 189.
[12] Em Fundamentos Metodológicos do Diálogo Transcultural, de Basarab Nicolescu. Entra aqui também a revisão do axioma do Terceiro Excluído (onde A e não A não podem coexistir), existindo, neste ponto, a possibilidade de construção de um paralelo entre os pares contraditórios postulados pela física quântica e a construção filosófica básica do pensamento taoísta (um dos pilares da Medicina Chinesa): a teoria do Yin Yang.
[13]Em  Intuição e arte de curar: pensamento e ação na clínica médica, de Maria Beatriz Lisboa.

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