quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Medicina Chinesa


Acupuntura Tradicional Chinesa


"O Tao é a Grande Imagem sem imagem
A qual permite multiplicar as imagens"
Isabelle Robinet

Pedro Ivo

Para entender a tradição terapêutica chinesa é necessário estar familiarizado com a filosofia taoísta[1] e com a cultura chinesa, ou pelo menos estar preparado para adentrar em uma concepção da saúde e da doença, assim como do corpo e seu funcionamento, totalmente distinta daquela a que estamos acostumados. Ainda que possa parecer estranha e, inclusive, muito distante de nosso mundo ordinário, esta forma de perceber a vida não é nada complicada, e pode se transformar em um exercício deveras interessante e transformador.

Em primeiro lugar, para os chineses existe a noção de que tudo no mundo está interligado por uma força motriz, o Qi, que circula por todo o universo, inclusive dentro de nós mesmos através dos Canais ou Meridianos
[2]. Desta forma, fica evidente neste pensamento que os Seres Humanos não estão separados entre si, nem tampouco separados do meio ambiente. Dentro deste ponto de vista, um princípio básico do Sistema Terapêutico Chinês é o enfoque holístico, ou seja, a noção de que as partes somente podem ser compreendidas em relação ao todo e vice-versa.

Seguindo este raciocínio, o terapeuta tem a tarefa de unir e interpretar toda informação relevante colhida na avaliação – a qual é construída a partir de uma complexa exploração que inclui a observação (do corpo como um todo, da postura, da atitude, da língua, entre outros), a palpação (pulsos, estruturas do corpo) e o escutar as queixas e direcionar questionamentos precisos (acerca do funcionamento geral do organismo, assim como do estado anímico e outras sutilezas) com a finalidade de se encontrar um Padrão de Funcionamento específico. Este padrão, ou pauta, será o pilar sobre o qual todo o tratamento se apoiará, sendo aqui mais importante a harmonização do indivíduo como um todo do que o combate a uma “doença” específica ou a busca linear da causa que originou determinado efeito.

Nesta direção, o terapeuta deve compreender as relações entre os sinais e os sintomas apresentados pela pessoa em questão, mais que chegar a uma causa partindo de um transtorno pontual, e formular um tratamento com a intenção de harmonizar os sistemas dentro do conjunto, o que, possivelmente, ativaria os mecanismos intrínsecos de auto-regulação.

Dentro desta lógica, as técnicas terapêuticas são aqui utilizadas com o intuito de ajudar o próprio indivíduo a encontrar seu caminho (Tao) de harmonização. A acupuntura e moxabustão (Jin Huo), o Tui Na (massoterapia), a alimentação energética, o uso de ervas e outras substâncias, o Qi Gong (exercícios terapêuticos) são recursos complementares que favorecem o processo de equilíbrio, conceito este que é bastante importante no pensamento chinês, e que difere da noção ocidental de equilíbrio estático, já que a regra da vida para os taoístas é a mutação
[3
].

Sendo assim, o maior desafio é sempre a adaptação às diferentes situações da vida para encontrar a balança dinâmica de cada momento, adequando as respostas e as atuações segundo a demanda. Este é o verdadeiro conceito de saúde desta corrente filosófica, sendo a perda deste potencial de equilíbrio um sinal de não-saúde que seria rapidamente percebido por meio das alterações – o que no ocidente chamamos de doença, a qual deve ser combatida, e os orientais, por outro lado, chamam de desequilíbrio, o qual é a pista ou a primeira oportunidade para se alcançar a plenitude.



Pedro Ivo é professor da Escola Nacional de Acupuntura- ENAc


Imagem retirada da página de sonia hirsch: http://www.correcotia.com.br/

[1] Filosofia baseada na dialética universal dos princípios masculino e feminino, da existência e não-existência (Yin e Yang). O Tao é entendido como esta realidade não palpável, porém real, que permeia todo o universo e, também, como o “caminhar” pela senda do conhecimento do que é mais essencial, lá onde encontramos a harmonia dinâmica com o todo. Um outro princípio interessante desta corrente é a não-ação (Wu Wei) que nada mais é do que a ação espontânea em tudo, sem a busca explícita de um resultado.
[2] Jing Luo (Canais ou Meridianos): o ideograma Jing denota “algo que passa através de”, podendo referir-se também a um “fio dentro de uma trama”. Luo seria “algo que conecta” ou pode referir-se a uma “rede”. Os Jing Luo são vasos ou Canais pelos quais são distribuídos o Qi e o Xue e as outras substâncias fundamentais. Conectam os Órgãos e as Entranhas (Zang Fu) entre eles e com o resto do corpo e estabelecem a relação Biao-Li (interior-exterior), o que permite atuar sobre qualquer parte do organismo mediante acupuntura ou tuina. Existem doze meridianos normais correspondentes a cada um dos Órgãos e Entranhas (Zang Fu), e seis meridianos extraordinários que se cruzam e enlaçam os canais normais, regulando-os. Os doze canais normais, mais Du Mai (Vaso Governador) e Ren Mai (Vaso Concepção), possuem pontos independentes e compõem o sistema dos 14 meridianos principais. Além destes, encontramos uma infinidade de vasos mais finos e secundários que conectam, em forma de retícula, todo o sistema, chamados vasos Luo. Existem também os meridianos tendineomusculares, em zonas mais cutâneas, mais extensas e superficiais, por onde circula Wei Qi (Qi defensivo).
[3] Um livro básico do Taoísmo é o I Ching, ou Livro das Mutações, obra composta de variada cronologia (completada em 700 A.C.) que descreve os mecanismos do universo a partir das combinações de Yin e Yang e das mutações de um no outro. É considerado um livro de adivinhação (oráculo), mas também um clássico do pensamento taoísta.

autonomia


Acupuntura: Autonomia em benefício da saúde


Pedro Ivo

Em um momento de profundas discussões, envolvendo campos diversos da Saúde, das Humanidades e da Política, sobre os rumos do exercício da Acupuntura – Medicina Tradicional Chinesa (MTC) no Brasil, decorrente, em grande parte, da entrada em vigor da Portaria 971, a qual implementa o exercício da acupuntura em caráter multiprofissional no SUS (Sistema Único de Saúde), creio apropriado elucidar sucintamente os embates e práticas discursivas dos agentes implicados e alertar sobre os mecanismos da política de exclusão defendida e explicitada pelas associações médicas brasileiras (Conselho Federal de Medicina, Conselhos Regionais de Medicina, Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, entre outras), assim como, ainda que em menor medida e com uma aparência mais sutil e democrática, pelos Conselhos das profissões da Área de Saúde que reconhecem a acupuntura como uma especialização dentro de seu campo específico de atuação.


Pretendo com este artigo expor de maneira breve esta problemática para tentar ampliar esta discussão, a qual se perde na história da acupuntura no Brasil, com foco especial nos embates entre distintas áreas interessadas na regulamentação desta profissão – seja como especialidade médica exclusiva, seja multidisciplinar (como especialidade das diversas profissões da Área de Saúde) ou, ainda, como uma carreira independente das outras profissões – suscitados com a aprovação da Portaria 971 e com a tramitação de dois grandes Projetos de Lei que regulamentam a Acupuntura, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.


De um lado, com uma concepção mecanicista/determinista que considera os fenômenos vivos a partir de uma causalidade linear e separou a cultura humanista e a cultura científica (como diria Edgar Morin, em “Sobre a Reforma Universitária”), está a Medicina Convencional e sua racionalidade biomédica, a qual exige que a acupuntura seja “ exercida por profissionais com o devido treinamento e competência, com a formação adequada para diagnosticar doenças e tratar pacientes, ou seja, por médicos ” (nota da Associação Médica Brasileira [AMB]), e proclama que a acupuntura é científica ainda que seus mecanismos bioquímicos de ação sejam todavia obscuros, tendo-se em conta a amplitude de tratamentos recomendados pela OMS com o uso de acupuntura e considerando que estes estudos “científicos” apenas comprovam alguns caminhos fisiológicos de analgesia. De outro lado, estão as demais profissões da área de saúde (psicologia, farmácia, fisioterapia e terapia ocupacional, biomedicina, educação física e enfermagem), beneficiadas com a medida de caráter multidisciplinar (as quais também se inserem no contexto biomédico de explicação da eficácia da acupuntura). E situada em outro lócus distinto dos dois anteriores, exercendo sua “marginalidade”, se encontra a Acupuntura - MTC, a qual clama pelo reconhecimento simplesmente, o que pressupõe relações simétricas e livres de coação, que vão além de uma tolerância positiva ( tradução livre de Interculturalizando el multiculturalismo, Fidel Tubino Arias-Schreiber, pág.189).


Completando o anteriormente dito, gostaria de levantar alguns fatos para análise atenta dos leitores. Para os “iniciados” em Acupuntura - MTC é sabido que estamos falando de uma Ciência milenar transdisciplinar (não confundir com “multidisciplinar”) que contempla o ser humano como uma entidade complexa, onde corpo, mente e espírito estão em um jogo constante de conciliação. Porém, para os que, todavia, ainda não conhecem esta racionalidade complexa, lanço aqui um alerta: não se deixem enganar pelo discurso científico oficial que limita um Saber extremamente amplo a uma pequena técnica complementar a serviço do status quo; dito de outro modo, fazendo uso das palavras de Guido Palmeira, “ no ocidente, a procura da cientificidade da acupuntura, ao contrário de esclarecer (ou legitimar) o saber que lhe dá sentido, tem sido a busca da confirmação da hegemonia da ciência médica”.


E ainda aproveito este espaço para expor o óbvio. Se Conselhos de profissões da Saúde, com campos de ação tão definidos, como farmácia e educação física, ou fisioterapia e psicologia, avalizam a acupuntura como especialidade e proclamam, todos eles, que a acupuntura deve ser multiprofissional devido à sua amplitude de ação, então uma conclusão pode ser facilmente sacada à luz, mesmo pelos que nunca tiveram contato com este Saber Milenar: a Acupuntura - MTC é sim um Saber que inclui, com uma racionalidade própria, todos os outros saberes e, inclusive, os extrapola, e portanto já deveria, neste momento, estar sendo exercida como uma profissão autônoma e independente.


Vale ressaltar que os portadores de diplomas de nível superior de outras áreas da saúde, com suas formações prévias, não estariam em condição nenhuma de vantagem no correto processo de Formação de um profissional de Acupuntura, muito pelo contrário, seria necessário sim que se submetessem a um outro processo extensivo de ensino, na busca de um novo Diploma específico e autônomo e não apenas mais um certificado de extensão ou especialização, dentro dos já tão “prostituídos” cursos livres ou de “PósGraduação” Lato Sensu, com parcos encontros (muitas vezes em finais de semana e, alguns, apenas uma vez por mês. Não se pode aprender um novo (e antigo) sistema terapêutico desta maneira!


Finalizando, acho que o caminho do reconhecimento e da aceitação mútuos, da definição dos campos de ação e do entendimento da possível coexistência de Ciências Terapêuticas não-exclusivas, pode ser o caminho menos traumático e mais democrático – além de estar em sintonia com as diretrizes do SUS - para o futuro da Saúde (em maiúscula) no Brasil e faço a ressalva de que a intenção última deste texto é colaborar consistentemente na ampliação desta discussão que tanto afeta o futuro de inúmeros profissionais da saúde, as políticas de saúde pública no Brasil e, por conseqüência, a saúde global da população.


Pedro Ivo é professor da Escola Nacional de Acupuntura - ENAc



cienciartecnoateologia

Acupuntura e Ciência



A intenção deste artigo não é falar sobre os já disseminados e conhecidos benefícios da acupuntura – MTC (Medicina Tradicional Chinesa). Atualmente abundam reportagens, em todos os tipos de mídia, sobre a eficácia desta ciência milenar e sua propagação no ocidente. Doutores de nossa ciência convencional já “comprovam” sua cientificidade e proclamam: “agora a acupuntura é científica!”. Fala-se de neurotransmissores e receptores, serotoninas e endorfinas e sobre os caminhos da analgesia acupuntural. E também citam os enormes benefícios da técnica, como um instrumento a mais dentro do modus operandi da ciência convencional.


A verdadeira intenção deste artigo é, contrariando o senso comum, denunciar toda esta desinformação, certamente aprovada pelos Conselhos das profissões da área de saúde interessadas e por algumas entidades com interesse escuso, que almejam uma regulamentação parcial desta ciência complexa e milenar - justamente quando projetos de lei que regulamentam a Acupuntura como uma profissão autônoma e independente, com formação em nível superior, tramitam com força no Congresso Nacional.


Em primeiro lugar, a passagem, em tão pouco tempo, de uma posição de ceticismo total, por parte os investigadores ocidentais sobre os efeitos da acupuntura, para outra de comprovação científica irrevogável, não é compartilhada por todos os cientistas e causa estranhamento nos mais atentos. Muitos contestam os efeitos mensuráveis da acupuntura e denunciam, inclusive, a falta de explicações válidas sobre os mecanismos fisiológicos verdadeiros decorrentes da técnica1, dentro da visão perpetuada pela ciência convencional. Por outro lado, o conhecimento da ciência original onde foi formatada a Medicina Chinesa, que contempla o ser humano como uma entidade complexa fruto da interação constante e inseparável entre corpo, mente e espírito (sim, para esta Medicina, o espírito é parte real de cada um de nós, assim como o Qi, força motriz que dá vida ao universo), em sintonia com os conhecimentos da vanguarda científica (vide Física Quântica, Complexidade, Transdisciplinaridade), não somente explica todos os mecanismos de ação da acupuntura (por meio de uma formação complexa e independente) como pode ser de grande ajuda para o nosso parco entendimento sobre a vida. Como disse Guido Palmeira, em seu estudo A Acupuntura no Ocidente: “Talvez a maior colaboração que o Oriente possa trazer à medicina ocidental não esteja na sua técnica, mas no seu saber”2.


Outro ponto relevante: hoje vários conselhos da área de saúde reconhecem a acupuntura como especialidade - o da própria medicina, o da psicologia, o da fisioterapia e o da farmácia, dentre outros. Ora, se áreas tão díspares, dentro da mentalidade ocidental, aceitam os efeitos da técnica como válidos em seus campos específicos de atuação, uma obviedade se apresenta, mesmo para os que não conhecem a Medicina Tradicional Chinesa: a acupuntura, dentro de sua racionalidade própria, é que parece englobar esses campos específicos e extrapolar cada um deles. Então o recado: para conhecer a acupuntura e aplicar seus conhecimentos de maneira realmente eficaz é necessário um estudo amplo e complexo, onde não cabe a especialidade como opção. Ou seja, parafreaseando uma campanha já em andamento pelo Brasil, “acupuntura é para acupunturistas”.

Finalizando, gostaria de salientar que as palavras acima proferidas não visam, de maneira alguma, agredir qualquer coletivo ou profissional da área da saúde, mas sim esclarecer a população em geral quanto à visões parciais sobre um assunto de utilidade pública. A regulamentação desta ciência não deve ser tratada com superficialidade, e todos os aspectos devem ser considerados, desde sua retrospectiva histórica e de sua inserção no ocidente, até o conhecimento total de sua racionalidade e de suas ferramentas terapêuticas próprias, tanto pelos que almejam ser chamados acupunturistas quanto pelos que estão envolvidos com o processo legislativo.



Pedro Ivo é professor da Escola Nacional de Acupuntura - ENAc

Guido Palmeira, acupuntura no ocidente > http://www.scielo.br/pdf/csp/v6n2/v6n2a02.pdf

1 para os interessados: http://www.sabbatini.com/renato/correio/medicina/cp010725.html
2 PALMEIRA, Guido. A Acupuntura no Ocidente. Cadernos de Saúde Pública, RJ, 6 (2): 117-
128,
abr/jun, 1990.