Latour

O Saber Tradicional da Medicina Chinesa e 

a Ciência Convencional


Seria possível analisar o esoterismo da acupuntura tradicional, mas não a cientificidade da acupuntura médica? (parafraseando Latour, 1994:92)

1. As Duas Grandes Divisões

A tentativa aqui será a de importar-exportar as Duas Grandes Divisões (a la Latour, 1994), a ocidental/ interior (entre nós, natureza e sociedade), e os outros/ exterior (entre eles e suas naturezas/sociedades misturadas) e, assim, causar um desconforto epistemológico, pelo menos, na construção do estudo sobre duas óticas-teorias conflitantes, no campo do conhecimento e na política, que permeiam uma mesma prática, a Acupuntura. Começo, então, citando um trecho de Jamais Fomos Modernos que melhor explica as ditas Divisões:

A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão exterior: apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a cultura, entre a ciência e a sociedade, enquanto que todos os outros, sejam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem separar de fato aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é signo do que é coisa, o que vem da natureza como ela realmente é daquilo que suas culturas requerem (...) Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as coisas são quase coextensivos. Em Nossa cultura, ninguém mais deve poder misturar as preocupações sociais e o acesso às coisas em si. (Latour, 1994:99)

Na esfera da Acupuntura, especialmente no Brasil onde passamos por um processo crítico de conflito entre as categorias interessadas na regulamentação dessa profissão - seja com atuação independente (como nos Projetos de Lei que tramitam no Senado e na Câmara dos Deputados), seja como uma especialidade exclusiva dos Profissionais da Saúde já regulamentados -, toda essa formulação parece-me muito pertinente e, inclusive, essencial para ajudar a pensar sua história recente e sua atual configuração no cenário nacional.

De um lado, a Ciência Convencional exibe hoje uma parafernália de explicações sobre a cientificidade da acupuntura - cientificidade essa bastante contestada no meio acadêmico e nos “laboratórios” (à maneira de Latour) da própria medicina oficial – com seus actantes[2] (leia-se endorfinas, cortisol endógeno, etc) que solucionariam qualquer dúvida, qualquer discordância e dissolveriam como mágica-ciência a idéia propagada por tanto tempo, pelos próprios cientistas, de charlatanismo (esse que é tão severamente combatido e que já foi, não há muito tempo, o substantivo que albergava a prática da acupuntura) e celebrariam assim, com as méritos da descoberta, a chegada da Acupuntura à modernidade. Sobre essa afirmação, desenvolverei um aparte, com a ajuda das idéias trabalhadas por Latour em Ciência em Ação, em especial sobre a noção de translação e as táticas desenvolvidas pelos construtores do fato em ação.

Do outro lado, ainda entre "as representações da natureza mais ou menos distorcidas ou codificadas pelas preocupações culturais dos humanos, que os preenchem por inteiro, e apenas por acidente percebem (...) as coisas como elas realmente são[3]" se encontra a Medicina Chinesa e seus milênios de “equívocos” que agora se esvairão, inevitavelmente, segundo as intenções dos profissionais interessados, sob os auspícios da ciência oficial.  Lancei mão dessa afirmação recheada de cinismo para expor algo mais sério: estamos diante de um tribunal da razão (latour, 2000:293) e, portanto, talvez seja apropriado, como recomenda Latour, a inversão dos resultados dos julgamentos de irracionalidade e, assim, subverter as regras do jogo, questionando a origem dos juizes e expondo as testemunhas  – o que desenvolverei mais adiante..

Separadas as duas concepções, acho pertinente alertar sobre o terreno pedregoso por onde caminha atualmente a Acupuntura e seus profissionais e, por isso mesmo, qual a atual configuração dessa prática no Brasil. Existem atualmente, como citado anteriormente, Projetos de Lei que visam regulamentar a prática da Acupuntura como uma profissão independente (não entrarei nas minúcias, as quais foram exaustivamente trabalhadas na dissertação) e que estão sofrendo grande pressão dos Conselhos de Medicina, por um lado, e das demais Profissões da Área de Saúde interessadas (Fisioterapia, farmácia, biomedicina, psicologia, etc), por outro, os quais foram já beneficiados com a Portaria 971 que autoriza a prática da Acupuntura “multiprofissional” no SUS (Sistema único de Saúde). Pois bem, é sabido que para que uma prática seja considerada médica e, desse modo, seja categorizada como especialidade, há a necessidade de comprovação científica por parte dos interessados. Nesse ponto resgato a caixa-preta Latouriana e as incertezas do construtor de fatos.

(vale ressaltar que ainda que o uso dessas ferramentas conceituais possa parecer forçado, afirmo que simplesmente elas repousam no meu quase-sujeito-objeto – no meu estudo exponho a dificuldade de delimitação precisa entre o pesquisador e o pesquisado – como um orvalho renovador numa manhã em que, porventura ou por descuido, eu tenha deixado meu trabalho sob a intempérie[4])

Sobre a construção de certezas, Latour lançou mão do conceito de translação como "a interpretação dada pelos construtores de fatos aos seus interesses e aos das pessoas que eles alistam” (Latour, 2000: 178) e, assim, traçou um caminho com suas táticas para sair de um estado de incertezas até tornar-se indispensável (idem, pág. 197). Na realidade da legitimação da Acupuntura no Brasil e nas palavras do próprio coletivo médico, “o mecanismo de ação da acupuntura tornou-se científico” (Revista Paulista de Acupuntura), a partir do momento em que a necessidade de comprovação científica, segundo os ditames vigentes, passou a ser um imperativo do Conselho Federal de Medicina, o qual, até então, negava veementemente e, inclusive, perseguia os Acupunturistas. A partir da aceitação interna da acupuntura, começou a luta pela exclusão dos profissionais não-médicos[5], numa clara tentativa de “tornar invisível o desvio" (tática 4 , p192) ou, dito de outro modo, a Acupuntura tradicional.

            Seguindo o raciocínio, acho adequado entrar com a caixa-preta de explicações sobre os mecanismos científicos da acupuntura - por isso mesmo chamada “científica” e atualizada como outra acupuntura, a técnica em sintonia com a modernidade – e explicitar seus caminhos fisiológicos duramente forjados nas redes[6] da tecnociência[7]. Assim sendo, transcrevo ditos mecanismos de confirmação do fato científico, explicitados pela SMBA (Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura):
Pesquisas demonstram que a acupuntura estimula terminações nervosas livres mielinizadas do tipo II e III nos músculos, enviando sinais para o sistema nervoso central, onde são liberados peptídeos endógenos semelhantes à morfina (endorfinas). Estes neurotransmissores causam analgesia bloqueando a propagação dos estímulos dolorosos para o córtex cerebral,e, consequentemente, impedindo sua percepção pelo cérebro. No SNC, o estímulo da acupuntura vai promover a analgesia mediante atuação em três níveis distintos: medular, mesencefálico e hipotalâmico. Neste último, a acupuntura vai ativar o eixo hipotálamo-hipófise, promovendo a liberação de beta-endorfina na corrente sangüínea e no LCR. Por sua vez, a beta-endorfina age sobre diferentes partes do cérebro e medula espinhal de modo a bloquear a passagem do estímulo doloroso. Um dado importante é que a liberação de beta-endorfina está correlacionada numa base equimolar à produção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), já que os dois têm um precursor comum. Assim, para cada mol de beta endorfina produzido, ocorre a liberação de um mol de ACTH, que vai atuar sobre o córtex da supra renal causando a liberação de cortisol. Neste fato, pode estar a explicação para a atuação da acupuntura nos processos inflamatórios da artrite e no broncospasmo associado à asma. O cortisol endógeno é liberado em quantidades muito reduzidas e finamente reguladas evitando assim os efeitos colaterais da terapia com corticóides. A nível do mesencéfalo, são neurônios da substancia cinzenta periaquedutal que vão liberar endorfinas e estimular neurônios do trato descendente dorso lateral para produzir serotonina e norepinefrina, inibindo deste modo o impulso doloroso a nível medular. O terceiro nível de atuação da acupuntura é a medula espinhal, onde interneurônios da substancia gelatinosa liberam dinorfina e bloqueiam o impulso doloroso que se propaga pelas fibras aferentes nociceptivas (página da SMBA, mecanismos de ação da acupuntura)[8].

Conhecidas as explicações “científicas”, vale lembrar que as indicações da Acupuntura (inclusive as propagadas por esse mesmo coletivo e pela OMS) em muito superam a mera analgesia, aqui tão festejada, e vão na direção de um sistema de cuidado integral do ser humano e não-humanos (para não perder a oportunidade de manter o linguajar latouriano) como explicitado pela própria Portaria 971: “A Medicina Tradicional Chinesa caracteriza-se por um sistema médico integral” (grifo meu). 
2. A inversão dos resultados dos julgamentos de irracionalidade
“Quem são os acusadores, quais são suas provas, quem suas testemunhas, como é escolhido o júri, que tipo de prova é considerada legítima" (Latour, 2000:304)
Decido expor dois casos clínicos e suas duplas interpretações, uma sob a égide do pensamento convencional e outra sob os critérios tradicionais, à semelhança de Latour, pra inverter a noção de irracionalidade proferida sobre a Acupuntura Tradicional por parte da ciência oficial e, assim, desconstruir, ou pelo menos desestabilizar, esse sistema de “crenças oficiais” que insiste em menosprezar a ciência milenar chinesa.
CASO CLÍNICO 1 
Uma mulher de 45 anos chega para uma consulta de acupuntura, em um momento de “desespero”, sofrendo de “dores de cabeça crônicas e insuportáveis”. Na avaliação, relata que veio como última esperança encaminhada pelos próprios médicos, os quais não sabiam a causa (depois de inúmeros exames) e já não mais recomendavam o seguimento do tratamento com morfina, por seu caráter fortemente aditivo. Relatava também a pouca "fé" no tratamento com acupuntura, por ter sido submetida, anteriormente, a um tratamento de “acupuntura médica”, sem sucesso. Começado o processo de avaliação peculiar da MTC, a senhora estranhou a quantidade de informações que estavam sendo colhidas, a análise da língua, a leitura demorada dos pulsos, as perguntas sobre sistemas aparentemente distantes da “cabeça” (digestão, menstruação, sonhos?, histórico pessoal, emoções!!!!, alimentação, trabalho, ....) e todas as questões, que em todo seu histórico, nunca haviam sido levantadas. Rendeu-se, sem mais alternativas.  O acupunturista explica para senhora que ela passa por um “Padrão de funcionamento” específico: Deficiência do Xue do Gan (parcamente traduzido como deficiência do Sangue do Fígado) com ascensão do Yang do Fígado, devido à união entre problemas menstruais antigos (mascarados com medicamentos), alimentação inadequada, rotina estressante, pouco descanso, atividade mental excessiva e emoções não trabalhadas. O acupunturista também enumera seus problemas antigos e mostra a relação entre esses e o problema atual, como a falta de acuidade visual (ligada à esfera funcional do Gan) mascarada com os óculos, a tontura e a laberintite, todas manifestações do mesmo Padrão (ver anexo 1). No primeiro momento, a Mulher não entende muito bem as relações entre ditas causas e manifestações com sua dor de cabeça, porém segue o tratamento e alcança um “potencial de harmonização” do organismo, depois de 10 sessões de acupuntura, cuidados na alimentação e exercícios de “transformação emocional”, típicos da MTC. Ao relatar o caso de "cura" para seu médico convencional, o mesmo se surpreende com os resultados, porém insiste na “irracionalidade” das explicações.

CASO CLÍNICO 2

Um senhor de 50 anos chega ao ambulatório de um Hospital sofrendo de fortes dores estomacais. O médico, após breves perguntas e sem examiná-lo, pede alguns exames e, ao recebê-los, constata que o senhor está com a bactéria Helicobacter pilori. Sendo assim, prescreve os antibióticos adequados e dá alta para o senhor. Ao cabo de 10 dias o senhor está curado. Um mês depois, o mesmo senhor chega ao ambulatório de acupuntura com os mesmos sintomas e é submetido ä avaliação da MTC. Ë constatado um padrão de Fleuma-Fogo no Estômago, decorrente, entre outras coisas, de uma dieta rica em laticínios e carnes, ansiedade e consumo de alimentos condimentados. Além das sessões de acupuntura, o senhor recebe recomendações alimentares e é estimulado a incorporar atividades lúdicas e caminhadas ao seu dia-a-dia.

A escolha desses dois casos clínicos visa expor, ainda que de maneira parcial, o abismo entre dois sistemas médicos igualmente válidos, porém regidos por racionalidades opostas e, nem por isso, excludentes.

3. Para concluir
O encontro com Latour, a esta altura de meus estudos, parece trazer-me um ar de incertezas mais que fatos. Parece inundar-me com um novo sopro de inquietações e expectativas conceituais, não tanto pelo que assimilei, e sim pelo que posso, abertas as comportas, vir a assimilar. Fica então um texto não-conclusivo prenhe de possibilidades.....

BIBLIOGRAFIA
LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997.
              CARRARA, Sérgio. Uma Tempestade Chamada Latour: a Antropologia da Ciência em Perspectiva. Physis: Ver. Saúde Coletiva, Rio de janeiro, 12 (1): 179-203, 2002.
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Coleção Trans. Editora 34. Rio de Janeiro, 1994.
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução de Ivone C. Benedetti. Editora UNESP. São Paulo, 2000.


[1] O termo tradicional é aqui preservado atendendo uma terminologia já consolidada no meio da Acupuntura. Vale a pena lembrar, não obstante, que o tradicional na MTC (Medicina Tradicional Chinesa) assume contornos mutantes como o próprio pensamento taoísta, berço dessa Medicina e de grande parte das disciplinas científicas que brotaram no decorrer dos últimos cinco milênios na Civilização Chinesa.
[2] Nos termos importados do livro Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora, de Latour, 2000..
[3] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 1994, pág. 98.
[4] Comentário seriamente inspirado pela crítica Uma Tempestade Chamada Latour: a Antropologia da Ciência em Perspectiva, de Sérgio Carrara.
[5] Terminologia usada pelo coletivo médico para designar os outros profissionais de saúde e os acupunturistas tradicionais e execrada por esses últimos.
[6] “a palavra rede indica que os recursos estão concentrados em poucos locais – nas laçadas e nos nós – interligados – fios e malhas” (Latour, 2000:294)
[7] Para a união entre as palavras ciência e tecnologia. (Latour, 2000: 53)
[8] As palavras em negrito são de minha responsabilidade.

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