sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Acupuntura chinesa, incorporada ao Patrimônio Cultural da Humanidade

Beijing, 17 nov (Prensa Latina)

A acupuntura chinesa, técnica de ampla cobertura e uma eficácia terapêutica reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, foi incluída na lista de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, da Unesco.

  Essa decisão, difundida hoje aqui por meios de imprensa, deu-se a conhecer durante a V sessão do Comitê Intergovernamental da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a proteção dos objetos de patrimônio cultural que se realiza nesta semana em Nairóbi, Quênia.

Também foram proclamados nessa categoria a Opera de Beijing e a moxibustão, outra especialidade da Medicina Tradicional Chinesa, mediante a qual se aplica calor em pontos específicos do corpo.

Até a próxima sexta-feira, o comitê analisará os 47 elementos de 29 países nominados para ser incorporados à referida lista, que já incluía 166 de 77 nações.

Junto às candidaturas os governos devem apresentar as propostas para preservar, propagar e difundir a importância da herança cultural imaterial.

Segundo a Convenção de 2003 sobre o tema, os patrimônios inscritos pela UNESCO, também chamados viventes, representam a raiz da variada cultura da Humanidade e sua manutenção, uma garantia para a continuação da criatividade.

mv/tjv/bj
Modificado el ( miércoles, 17 de noviembre de 2010 )


terça-feira, 9 de novembro de 2010

Pensamento em Movimento



Por Thiago Moutinho Atala Neto

 “Uma doutrina formulada é eventualmente algo inerte. A conclusão alcançada por um processo de pensamento não raro é o fim do processo de pensamento” (Arthur Lovejoy)

Esse texto nasce de uma inquietação: como conciliar a aparente contradição entre, de um lado, a intenção presente no terapeuta/técnico/especialista/praticante de modalidades naturais de medicina – tal como acupuntura, Body Talk, e outras – com uma recusa da visão dicotômica que classifica a doença, dor, incomodo ou sintoma do paciente como um “mal” a ser extirpado em prol do restabelecimento da saúde bem como do estado desejado de bem estar? [1]
Dito de outro modo: creio que a maior parte dos terapeutas naturais operam, de forma consciente ou não, com uma agenda – uma intenção, fim, meta, objetivo fixo – de “curar” ou “melhorar” o paciente, o que aparentemente exige a premissa – inconsciente ou não – de que há um “mal” a ser eliminado em prol do “bem maior”. Ora, tal concepção não seria contrária à tão proclamada crença na complementaridade dos opostos, à  visão do fluir natural e necessário das coisas? Uma vez aceite tanto a “eficácia” de certa terapia quanto a “necessidade” de se “resolver” o mais rápido possível determinado padrão de desarmonia identificado em um paciente, qual o espaço real que se dá à opinião do valor, intrínseco ou relativo, da “doença”/desarmonia?
Não busco aqui apresentar uma incoerência lógica ou formal, mas problematizar algumas das premissas que norteiam a prática clínica de muitos terapeutas naturais – premissas essas que influenciam, p.ex., na construção de expectativas em relação ao tratamento ou mesmo na interação energética entre paciente e terapeuta, o que termina por ter efeitos visíveis e de vital importância no “resultado” (desenrolar) da técnica utilizada.
Meu ponto não é tanto propor uma “conciliação” definitiva ou uma fácil resolução sintética e irreversível entre as distintas perspectivas, mas avaliar as possíveis combinações entre as perspectivas acima esboçadas, particularmente no momento em que o terapeuta se encontra frente a frente com o paciente que o procura sob a promessa de cura, melhora, restabelecimento...
Presença
Um preceito comum aos terapeutas, ao abordarem seus pacientes, é o de se manterem presentes durante o tratamento, isto é, o de se centrarem no “agora”, afastando da mente – e do coração – toda e qualquer consideração acerca do passado e do futuro. Isso implica em manter a atenção nas medidas práticas a serem tomadas para que se realize um bom trabalho, visto que nosso comportamento cotidiano de manter a atenção simultaneamente  no passado, presente e futuro implica em um foco partido, cindido, fragmentado, o que implica, naturalmente, na diminuição de nossa eficácia. Qualquer pessoa que já tenha “se perdido”, por assim dizer, em uma atividade, sabe do que esta presença se trata: com toda a atenção voltada para o momento presente, as preocupações saem de vista e a experiência do evento torna-se, no mínimo, “estranha”, especial, curiosa. Mesmo um esforço intenso pode ser executado sem grande stress mental. A vivência do tempo, segundo alguns, também se altera, parecendo passar mais devagar – comumente jogadores de esportes como tênis ou baseball relatam que podem ver a bola “voando” de forma mais lenta quando estão em estado de concentração total. A lista poderia continuar, mas o essencial já foi dito: com a ausência de um foco partido, parece que se faz qualquer coisa melhor e com mais prazer.
Creio que todos já experimentamos em algum momento essa experiência, alguns mais, outros menos, alguns em apenas uma atividade, outros em tarefas distintas. Alguns indivíduos, que se habituaram a vivenciar a “presença total” apenas em uma esfera da vida tal como a profissional, eventualmente tornam-se viciados nesta, visto poderem alcançar certa sensação de paz, em meio a toda a balbúrdia e confusão aparente, ao passo que, em circunstâncias aparentemente menos conturbadas de suas vidas, dada a pluralidade de preocupações e considerações simultâneas que perpassam suas mentes, a vivência se torna um tanto desagradável.
Naturalmente, esta atitude “garante”, por assim dizer, certa viabilidade e qualidade ao trabalho desempenhado, no caso, o do terapeuta. Ao se encontrar “na zona do tratamento”, com o foco centrado, a tomada de decisões se torna mais clara e o espaço para se ouvir toda sorte de intuições é significativamente ampliado. Mas, ainda há um “que” de utilitarismo, de intenção, contido nesse comportamento: deve-se ter presença para alcançar melhor resultado! Seria possível não ter alguma “meta” a ser cumprida em uma atividade terapêutica?
Talvez a questão não seja a de ter ou não uma meta, mas a de se agarrar a estas “versus” vivenciá-las. Quero dizer, sempre se pode dizer que por trás da atitude mais desinteressada possível há um interesse particular – aliás, tal é o método clássico dos moralistas de todos os tempos, i.e., encontrar interesses mesquinhos por detrás de atitudes “inocentes”. Sim, há uma impossibilidade de nos desprendermos de nossas emoções, expectativas e desejos parciais – i.e., polarizados – seja no ambiente terapêutico, seja alhures, mas pode-se manter uma relação menos apegada, menos identificada, com as expectativas, intenções, desejos e agendas da vida cotidiana. (circulação de pensamentos, de energia..)

Motivação e entusiasmo; cotidiano e contemplação
Atuar com um objetivo não é, assim, exatamente o “problema”, mas sim confundir determinado objetivo com a razão única de ser da ação – afinal, não controlamos o resultado de nossas atitudes. Agir unicamente em torno de um objetivo fixo seria uma espécie de estagnação de energia; a ação única e exclusivamente motivada para um fim se equivale à ação orientada por um desejo, uma falta, um vazio, um lapso, no caso, o da saúde do paciente (seja lá o que isso for). E como não crer que a obsessão por bons resultados, enquanto único motivo da ação, também não se fundamenta em uma constante necessidade de auto-afirmação?
É certo que, em termos pragmáticos, um terapeuta faz uso de métodos para “curar” o paciente; há ai uma relação de causa e efeito. O terapeuta precisa de sobreviver, ganhar dinheiro, e o faz através da obtenção de resultados – i.e., ele “causa”, produz certo estado de coisas e assim é recompensado pelo serviço. Nunca é demais repetir o que foi dito anteriormente: possivelmente toda ação humana está impregnada de motivos similares aos aqui mencionados, que por sua vez estão entremeados de emoções e considerações as mais diversas.
Em um nível pragmático, há portanto a eleição, por parte do terapeuta, de “coisas a fazer” e de “resultados a se obter”, isto é, há a eleição de um programa humanista – um fim, um ideal, uma meta, um telos, tal como a “saúde”, o “esclarecimento/iluminação” do paciente, etc. Da mesma forma, em um nível cotidiano, as leis de causa e efeito regem o comportamento – “se colocarmos uma agulha aqui e outra ali, possivelmente o paciente irá melhorar” – nós temos controle relativo das situações e do desenrolar das ações. Longe de ser errado, talvez seja impossível não vivenciar tais crenças, mas há uma diferença substancial entre vivenciá-las, deixá-las fluir por nós, e por outro lado, nos identificarmos, nos apegarmos a elas.
Embora sejamos entremeados de crenças, emoções, pensamentos, não somos nenhum destes em específico. Tampouco temos domínio total de seu fluxo e refluxo, embora comumente desejamos nos petrificar sobremaneira em torno de alguns conceitos-chave ou emoções-chave – sou deprimido, sou agradável, sou inteligente, sou um bom terapeuta, etc. Fora a ilusão do controle aí contida, onde se encontam as idéias outrora propagadas, de circulação de energias, de equilíbrio dinâmico, de movimentação e circulação das forças componentes e complementares da dualidade? Como ofertar uma “cura”, que também pode ser entendida como restabelecimento de harmonia dinâmica, se estamos presos a noções identitárias muito fixas? A desejos uniformes? A metas pré-estabelecidas de saúde e doença? A emoções, pensamentos, falsamente identificados como minhas emoções, meus pensamentos? Há a necessidade de nos desassociarmos, vez ou outra, do nível pragmático acima mencionado; melhor, de associarmos a ele um outro nível, mais abrangente e “contemplativo”, menos “utilitarista”. Não para “superar criticamente” o nível cotidiano da realidade, mas para lembrarmo-nos do que não nos encerramos na realidade pragmática; tampouco o mundo se encerra no “certo e errado” que tanto guia a atividade profissional.
Há a necessidade de um esforço diário, por assim dizer, frente ao tecnicismo, que é afinal importante, mas facilmente nos leva ao comodismo – porque garante nossa sobrevivência diária. Para isso, não há fórmula; tal é o motivo de não propor aqui uma conciliação definitiva, mas sim de buscar apresentar um incômodo gerador de ruminações e exercícios mentais. Podemos apenas, neste momento, levantar alguns possíveis tópicos de reflexão. Gostaria aqui de retomar a questão inicial: como entrecruzar a concepção “tecnicista” do método terapêutico enquanto gerador de uma cura com uma percepção de mutabilidade constante, que exclui a existência de um patamar fixo de oscilação, de mutação, de equilíbrio? Em outros termos, se não há um padrão fixo de oscilação ou de mutação, não há um fundamento sólido para se discernir a saúde e a doença, logo deve-se sempre repensar todo o aparato de julgamento intelectual, das bases ao cume. Deve-se manter o pensamento em movimento.
Thiago Moutinho Atala Neto, aluno do 3° semestre de Acupuntura.

Bibliografia:
BUENO, André. A estrutura do pensar chinês.
_____. Laozi e zhuangzi. Mestres do caminho.
MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo.
TSÉ, Lao. Tao te ching. O livro do caminho e da virtude. Tradução: Wu Jyn Cherng. Carta da transdisciplinaridade
I Ching. O livro das mutações. Prefácio de Carl Gustav Jung. Tradução: Richard Wilhelm.


[1] Esse trabalho é simultaneamente fruto de um conjunto de reflexões pessoais de longo prazo em  torno das motivações da ação humana; fruto de minha experiência terapêutica com uma técnica natural (Body Talk); e um conjunto de especulações, exercícios e hipóteses acerca das motivações e da postura dos indivíduos atuantes na área de saúde. Vale mencionar que dada a natureza do trabalho, termino por ser mais assertivo do que desejaria. A construção dos argumentos é apenas provisória: espero que enseje uma posterior desconstrução e reconstrução, favorecendo os únicos objetivos pertinentes de um texto de caráter reflexivo, isto é, a problematização e o ensejo de se pensar mais e melhor. Uma última nota: o tema sob enfoque se desenvolve frente à questão central das possibilidades e desafios de se trazer ao cotidiano concepções “taoístas”.  Todavia, a opção do recorte e os limites de espaço excluem a quase totalidade das considerações que, no entanto, são essenciais para uma boa compreensão do tema: muito se deu por subentendido, e mais questões foram levantadas do que respondidas. Fica a cargo do leitor acrescentar à sua leitura comentários, glosas, notas, citações refutações e críticas.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Discurso Científico Oficial e a Vontade de Verdade




“Hoje em dia, o modelo biomédico é muito mais do que um modelo. Na profissão médica, adquiriu o status de um dogma, e para o grande público está inextricavelmente vinculado ao sistema comum de crenças culturais”  (Capra, 1986: 154)




Inicio este capítulo com dois textos extraídos da página Web da AMBA (Associação Médica Brasileira de Acupuntura) para explicitar um convívio entre conceitos díspares, e inclusive contraditórios, entre o Saber Tradicional da MTC e o Cientificismo ocidental, dentro do mesmo coletivo médico, o qual não pôde abrir mão dos conhecimentos tradicionais e deve, por obrigação com o próprio Conselho, comprovar cientificamente os métodos por ele utilizados.


 “A Acupuntura é a prática fundamental da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), usada há mais de 4000 anos no Oriente e agora difundida no Ocidente. Os fundamentos da Acupuntura têm comprovação científica no Brasil e a prática médica está entre as 50 especialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB) e pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). A técnica se baseia em energias que percorrem o corpo. Esses trajetos, - meridianos ou canais de energia (grifo meu) -, passam pelos órgãos e vísceras e se exteriorizam na pele e estruturas próximas, como, tecido subcutâneo, músculos, tendões e outras. Nos trajetos dos meridianos foram mapeados pontos, que podem ser alcançados por agulhas, permitindo que sejam estimulados ou sedados, conforme o caso, para desbloquear a passagem da energia (grifo meu) e permitir sua circulação e distribuição pelo organismo. Ficará a critério do médico acupunturista selecionar e fazer a combinação dos pontos mais adequados para colocação das agulhas no paciente, de acordo com as desarmonias e características de cada indivíduo.” (Fonte: Corpo Médico da AMBA, página web da AMBA – Associação Médica Brasileira de Acupuntura)
“As agulhas de Acupuntura possuem efeito bioelétrico. O conceito de Energia dos antigos chineses é atualmente compreendido como estímulo das fibras nervosas A-delta e C. Com os conhecimentos dos efeitos da agulha de Acupuntura em  neuroanatomia e neurofisiologia, o mecanismo da ação da Acupuntura tornou-se científico (grifo meu). Hoje, a dor é uma das grandes indicações da Acupuntura. Por meio de determinado aprofundamento da agulha, o médico acupunturista  consegue mandar para o cérebro (Sistema Nervoso Central), um impulso biolelétrico  que bloqueia determinadas áreas e elimina a dor”. (Fonte: Revista Paulista de Acupuntura, página web da AMBA)

Para seguir este estudo, creio pertinente fazer um breve lembrete sobre a história da acupuntura no Brasil, desde quando era considerada uma prática de curandeirismo até seu status atual de especialidade de várias profissões, inclusive da Medicina Oficial. Analisarei, principalmente, como “o mecanismo de ação da acupuntura tornou-se científico” (Revista Paulista de Acupuntura), e por que esta transmutação de uma “panacéia mística” (Nascimento, 1998) à ciência indubitável poderia servir de subsídio para a negação de seus milênios de efetividade e para a exclusão dos profissionais formados em acupuntura tradicional chinesa.



E a acupuntura tornou-se científica...


Na segunda metade da década de 1970, a acupuntura sofria uma importante resistência por parte dos conselhos de medicina, onde era classificada como ‘charlatanismo’ e ‘crendice’. A conjuntura autoritária que marcou esta época colaborou para que a intolerância médica à acupuntura viesse a se traduzir em atos que ameaçaram e por vezes atingiram com prisão e processos criminais alguns acupuntores, particularmente aqueles que não possuíam formação em medicina ocidental. Esta conjuntura apareceu nos jornais da época da seguinte maneira: O Estado de S. Paulo, um jornal da elite sócio-econômica e dirigido a esta mesma elite, trouxe, na virada do qüinqüênio, duas reportagens sobre acupuntura (31.3.1974, 20.12.1975). Utilizando-se de uma linguagem identificada com o discurso científico, estas reportagens continham uma mensagem clara: a acupuntura não é científica, seus resultados devem-se ao ‘efeito placebo’ ou ‘efeito psicológico’, e envolve riscos, ou seja, é perigosa — ‘Cientificamente falando, os relatos da literatura médica chinesa, positivamente, não convencem" e ‘muitos charlatães ainda praticam a arte (acupuntura), potencialmente perigosa, iludindo o público e prejudicando-o”. (Nascimento, 1998)


Este posicionamento, claramente contrário à aceitação da acupuntura, em todas as suas formas, pelo coletivo médico, persistiu durante a década de 80 e “no parecer decorrente do processo de consulta 1588-28/85, aprovado em 1986, o Conselho Federal de Medicina rejeitou novamente a Acupuntura como atividade médica válida, pois consideravam que toda a terapêutica da acupuntura é baseada em princípios energéticos sem nenhuma semelhança real com a medicina ocidental” (A história da acupuntura[1]). Enquanto isso, segundo esta mesma fonte, desde 1981 um curso técnico já havia sido reconhecido pelo MEC em São Paulo e, a partir de 1985, os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais habilitavam, através da resolução COFITTO – 60, seus profissionais para a prática da acupuntura, seguidos pelos Biomédicos.
Finalmente, na década de 90, mais precisamente em 1995, o CFM (Conselho Federal de Medicina) classifica a acupuntura como especialidade médica e inaugura, nas palavras de Nascimento:


 “... a tendência a incorporá-la como uma técnica dentro da lógica e do arsenal terapêutico da medicina ocidental contemporânea. Mais do que isto, inclinava-se a uma apropriação mecânica de aspectos terapêuticos da acupuntura, dentro da lógica médica convencional. Havia uma propensão a não se considerar suficientemente o sistema coerente e integrado de que se origina e faz parte a acupuntura, ou seja, um sistema médico em que homem e natureza são integrados numa perspectiva de macro e microuniversos, e o sujeito humano é entendido em sua integralidade, incluindo-se aí seus aspectos psicobiológicos, sociais e espirituais: ‘A acupuntura — uma técnica milenar chinesa — começa a ser desvendada pela ciência moderna. Conceitos vagos e pouco científicos (...) estão sendo substituídos por explicações anatômicas e fisiológicas’ (Folha de São Paulo, 19.9.1994)” (Nascimento, 1998).



A partir deste ponto, nota-se o início de um processo de racionalização da MTC-acupuntura, e todo o Saber acumulado durante milênios passa a ter um caráter descartável frente às “novas descobertas”, ao mesmo tempo em que os Acupunturistas-médicos (ou acupunturólogos) proclamam que “o mecanismo da ação da Acupuntura tornou-se científico”. Sobre este assunto, Edgar Morin anuncia que “a racionalização consiste em querer encerrar a realidade num sistema coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz este sistema coerente é desviado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão ou aparência” (1990).

Por outro lado, dentro do próprio coletivo médico e do meio científico convencional, continuam a aparecer sérias contestações sobre a cientificidade da acupuntura e inúmeros estudos vão contra à tendência de assumir a acupuntura como cientificamente comprovada, dentro dos ditames biomédicos. Como anuncia o neurofisiologista Renato Sabbatini, pesquisador da UNICAMP:


“... a conclusão é a seguinte: os resultados de pesquisas médicas sobre a acupuntura são contraditórios, e dependem muito da qualidade do estudo e da tendência pessoal dos pesquisadores. Em geral, estudos metodológicos mais bem feitos mostram que a acupuntura não tem nenhum efeito superior ao placebo em dores crônicas das costas, cessação de tabagismo, perda de peso e apetite e doenças reumáticas. Parecem ter algum efeito em dores agudas de dente, dores de cabeça e dores causadas por disfunções da articulação temporo-mandibular, mas não são efeitos fortes (poderiam ser causados por outras coisas além das alegadas pelas bases teóricas alegadas para a acupuntura).” (Sabbatini, 2001)

Já Guido Palmeira, em seu estudo “A Acupuntura no Ocidente”, cita os estudos de Lewith e Patel[2] sobre as pesquisas científicas com metodologia convencional e questiona a necessidade de comprovação científica, a partir desta perspectiva:

“Enquanto a acupuntura tradicional baseia o tratamento no entendimento tradicional da doença, seleciona os pontos a serem picados em função das necessidades individuais dos pacientes e, no curso do tratamento, modifica os pontos utilizados, segundo a variação das necessidades dos doentes, na maioria dos estudos examinados por Patel, os pontos são selecionados com base no diagnóstico da medicina científica. Identifica-se um conjunto de pontos definidos a priori como indicados para a patologia em questão, que serão utilizados à maneira de uma fórmula ou prescrição que não varia de um doente para outro, e que não é modificada durante o tratamento. Considera-se que tais diferenças podem prejudicar, significativamente, os resultados do método tradicional. O mesmo autor chama a atenção para o fato de que a maioria dos ensaios tem como objetivo avaliar os efeitos da acupuntura sobre a dor, embora o principal objetivo da medicina tradicional seja a prevenção da doença e a manutenção da saúde, restando ao tratamento da doença um papel secundário e, ao alívio da dor, uma função apenas complementar; e sugere a ‘utilização de indicadores que possam medir o 'estado de saúde global' dos pacientes, a principal preocupação da terapêutica tradicional.” (Palmeira, 1990)

                 E ainda sobre a recente “descoberta” da cientificidade da acupuntura e suas repercussões na comunidade científica e acadêmica, assim como na população em geral, Nascimento completa:



“Os resultados das pesquisas científicas mencionados nos jornais informam sobre a confirmação da ação da acupuntura sobre a sensação dolorosa, através de explicação em termos neurofisiológicos e bioquímicos. Mas isto representa apenas um início na tentativa de explicar cientificamente os mecanismos de ação da acupuntura. Ainda assim, as respostas produzidas pelo sistema nervoso de acordo com os diferentes pontos escolhidos permanecem um mistério para os pesquisadores. Tenta-se fazer acreditar que às conquistas no campo científico possam corresponder progressos na efetividade terapêutica da acupuntura, o que não é necessariamente verdadeiro. Parece razoável concluir que as novas vinculações institucionais com as ciências biomédicas nas universidades são exibidas para persuadir a opinião pública e os legisladores, explorando assim mais ideológica que academicamente o prestígio da ciência (grifo meu). A aceitação da eficácia da acupuntura, mesmo em sua ação sobre a dor, vem ocorrendo, em larga medida, independentemente do progresso do conhecimento médico sobre os seus mecanismos de ação. A constatação de sua efetividade e eficácia, por parte de pacientes e terapeutas, tem sido, em nosso entendimento, o principal fator a motivar sua adoção e expansão nos serviços e nas instituições de atenção à saúde.” (Nascimento, 1998)



Os mecanismos de ação e a multiplicidade de indicações

                 Uma das prerrogativas para a consolidação da acupuntura médica é justamente seu caráter científico, recentemente “desvendado”, segundo estudos oficiais, por meio de inúmeras pesquisas. Os mecanismos de ação da acupuntura são assim explicitados pela SMBA (Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura):

Pesquisas demonstram que a acupuntura estimula terminações nervosas livres mielinizadas do tipo II e III nos músculos, enviando sinais para o sistema nervoso central, onde são liberados peptídeos endógenos semelhantes à morfina (endorfinas). Estes neurotransmissores causam analgesia bloqueando a propagação dos estímulos dolorosos para o córtex cerebral,e, consequentemente, impedindo sua percepção pelo cérebro. No SNC, o estímulo da acupuntura vai promover a analgesia mediante atuação em três níveis distintos: medular, mesencefálico e hipotalâmico. Neste último, a acupuntura vai ativar o eixo hipotálamo-hipófise, promovendo a liberação de beta-endorfina na corrente sangüínea e no LCR. Por sua vez, a beta-endorfina age sobre diferentes partes do cérebro e medula espinhal de modo a bloquear a passagem do estímulo doloroso. Um dado importante é que a liberação de beta-endorfina está correlacionada numa base equimolar à produção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), já que os dois têm um precursor comum. Assim, para cada mol de beta endorfina produzido, ocorre a liberação de um mol de ACTH, que vai atuar sobre o córtex da supra renal causando a liberação de cortisol. Neste fato, pode estar a explicação para a atuação da acupuntura nos processos inflamatórios da artrite e no broncospasmo associado à asma. O cortisol endógeno é liberado em quantidades muito reduzidas e finamente reguladas evitando assim os efeitos colaterais da terapia com corticóides. A nível do mesencéfalo, são neurônios da substancia cinzenta periaquedutal que vão liberar endorfinas e estimular neurônios do trato descendente dorso lateral para produzir serotonina e norepinefrina, inibindo deste modo o impulso doloroso a nível medular. O terceiro nível de atuação da acupuntura é a medula espinhal, onde interneurônios da substancia gelatinosa liberam dinorfina e bloqueiam o impulso doloroso que se propaga pelas fibras aferentes nociceptivas (página da SMBA, mecanismos de ação da acupuntura)[3].

Dentro desta linha de raciocínio, nota-se que a acupuntura pode ser realmente comprovada - ainda que de maneira inespecífica, se atentamos para a necessidade da escolha precisa de alguns pontos específicos para tratamentos também específicos - pela ciência biomédica, principalmente se seu uso se limitasse à supressão da dor e alívio sintomático dos sintomas. Porém, é de conhecimento geral, inclusive dentro do coletivo de médicos-acupunturistas, que as indicações da acupuntura ultrapassam, e muito, a simples analgesia. Vejamos quais são as indicações desta técnica, segundo os próprios médicos:
“Embora seja indicada para dores, a Acupuntura, como uma especialidade médica, pode tratar uma grande variedade de doenças:
Músculo-esqueléticas – Dores de coluna (dorsalgia, lombalgia) e de joelho, ciática, ombro e cotovelo doloroso, bursite, tendinite, artrite, torcicolo, fibromialgia, dor da articulação temporomandibular (ATM), dor no calcâneo, traumatismos, lesões por esforços repetitivos (LER/DORT).

Digestivas – Gastrite, refluxo gastroesofágico, azia, constipação intestinal, intestino irritável diarréico, enjôos.

Respiratórias – Bronquite, asma, rinite, sinusite.

Neurológicas – Enxaqueca, cefaléias em geral, vertigem e zumbidos, seqüelas de acidente vascular cerebral, paralisias faciais, neuralgia do trigêmeo, dores dentárias, neuralgias intercostais, formigamentos.
Psíquicas – Ansiedade, depressão, insônia, síndrome do pânico, estresse.

Ginecológicas – Tensão pré-menstrual (TPM), distúrbios menstruais, corrimentos genitais, sintomas de menopausa.

Urológicas – Sintomas prostáticos e urinários

Cardiovasculares – Hipertensão arterial, palpitações.

Endócrinas – Obesidade.

Dermatológicas – Urticária, eczemas, psoríase.
Diversas – Tabagismo, gripe e resfriado, aumento da resistência imunitária em geral.
A Acupuntura aplicada por médico assegura que não está sendo tratado apenas o sintoma, mas também as doenças energéticas [grifo meu] que são diagnosticadas e que são a base dos quadros clínicos apresentados pelo paciente.” (Fonte: Corpo médico da AMBA[4])

E sobre a integração dos dois sistemas médicos no ocidente, notável uma vez mais no próprio texto da AMBA (quando o Corpo Médico, mesmo defendendo a acupuntura científica, fala das doenças energéticas - idéia não aceita pela Medicina Convencional), Guido Palmeira escreve:

“Pretender que a eficácia de um saber que, segundo Cai Jing Feng, ‘tem controlado as maiores epidemias de doenças infecciosas na história da China’, deva-se a que a introdução de agulhas, em determinados pontos, tenha como conseqüência a liberação de mediadores bioquímicos que interferem no fenômeno da dor; e que o sucesso obtido pelos chineses com a acupuntura durante dois mil e quinhentos anos de desenvolvimento seja fruto apenas da acumulação de observações empíricas, é fechar os olhos ao saber tradicional, é descaracterizá-lo, é optar por uma 'cegueira etnocêntrica'.(Palmeira,1998)

E completa, de maneira esclarecedora:

“Nos últimos quarenta anos, o oriente desenvolveu novas técnicas terapêuticas, associando o saber milenar com o saber e a técnica ocidentais. Ao ocidente, que não domina o saber tradicional, — ao contrário, o nega — restou a pobre e limitada perspectiva de procurar esclarecer, com seus próprios recursos teóricos, os mecanismos de ação e os efeitos de uma técnica oriental isolada em uma situação específica, a dor. No ocidente, a procura da cientificidade da acupuntura, ao contrário de esclarecer (ou legitimar) o saber que lhe dá sentido, tem sido a busca da confirmação da hegemonia da ciência médica, a possibilidade de fazê-la capaz de explicar os efeitos até então enigmáticos das agulhas.” (Palmeira, 1998)

Neste ponto, acho relevante a inserção da idéia de Vontade de Verdade, nos moldes propostos por Foucault (1996), para discutir o uso do selo científico como passaporte para o exercício de poder e para a construção do sistema de exclusão.


“[...] as grandes mutações científicas podem talvez ser lidas, às vezes, como conseqüências de uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparição de novas formas na vontade de verdade. [...] Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas [...] enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade- uma espécie de pressão e como que um poder de coerção” (Foucault, 1996).


Trecho da Dissertação para conclusão do bacharelado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia da UnB.


[1] Trecho retirado da página www.acupunturabrasil.org
[2] LEWITH, G. T. — Can we assess the effects of acupuncture? British Medical Journal, Vol. 288, 19, may, 1984.  PATEL, M.S. — Problems in the evaluation of alternative medicine, Soc. Sci. Med., (25) 6, 1987.   

[3] As palavras em negrito são de minha responsabilidade.
[4] Texto retirado da página web da AMBA (Associação Médica Brasileira de Acupuntura).

domingo, 21 de fevereiro de 2010

acupuntura - MTC: sistema médico integral



Especialista em Acupuntura ou Acupunturista em especial?


Este artigo nasce da necessidade de prestar esclarecimentos à população interessada e de traçar novos caminhos de diálogo entre as categorias profissionais envolvidas nos processos de consolidação da Acupuntura - Medicina Tradicional Chinesa (MTC) - no Brasil.

Antes de entrarmos no mérito da discussão, creio oportuno dar uma sutil pincelada sobre alguns fatos importantes nesse campo controverso:

1. A MTC é uma Ciência Milenar ampla e profundamente documentada em extensa literatura e segue seu caminho em adaptação dinâmica no tempo-espaço (cruzando os milênios e adentrando no ocidente), pautada numa forma de pensamento (Taoísmo) que contempla a transformação contínua de todas as coisas (portanto, não é uma forma de tradicionalismo estanque, e sim uma ciência viva e em constante mutação);

2. “A Medicina Tradicional Chinesa caracteriza-se por um Sistema Médico Integral, originado há milhares de anos na China.” (trecho retirado da Portaria 971);

3. A MTC possui um corpo teórico-prático coeso de entendimento sobre os mecanismos da vida (fisiologia na MTC), de investigação sobre as causas das desarmonias e sobre a consolidação dos estados de desequilíbrio (fisiopatologia na MTC), de tratamentos eficazes desses estados desarmônicos e de prevenção dinâmica de problemas futuros (Acupuntura Tradicional, Tuiná, Fitoterapia Chinesa, Qi Gong, Lian Gong, Tai Ji Quan, Alimentação Terapêutica);

4. A acupuntura era considerada, até poucas décadas atrás, uma forma de curandeirismopelo meio científico convencional ocidental e agora passou a ser uma prática científica oficial e irrevogável, sem que nada de novo tenha sido incorporado aos seus fundamentos e diretrizes;

5. A Portaria 971 regulamenta a entrada de Práticas Integrativas no SUS, incluídas a Acupuntura e a Fitoterapia, exercidas pelos profissionais da Área da Saúde; 

6. Atualmente tramitam no Congresso Nacional dois grandes projetos que visam regulamentar a Acupuntura como profissão autônoma e Independente, e vêm sendo ambos bastante desfigurados pelos coletivos de profissionais da Área da Saúde, já contemplados com a especialidade em Acupuntura;

7. Existem no Brasil, desde 1980, cursos técnicos em Acupuntura (alguns com mais de 2.500 horas totalmente presenciais), com formato e densidade acadêmica e preocupados em disseminar a Ciência milenar da Acupuntura, formando profissionais completos, com conhecimento das biociências ocidentais e da grandiosa Medicina Chinesa;

8. A OMS criou diretrizes para a capacitação plena de acupunturistas autônomos e recomenda a inserção desses profissionais nos sistemas de saúde de seus países membros.

Acabado esse necessário intróito, lanço aqui uma pergunta chave: queremos especialistas de profissões da área de saúde, que contam com um corpo teórico distante da MTC, armados somente com uma técnica mal acabada a favor da mesma visão já consolidada nos cursos habituais ou, por outro lado, queremos profissionais imersos numa visão integral do ser humano, com uma formação exaustiva e investigativa sobre os preceitos mais caros dessa ciência que atravessa milênios? Essa não é uma pergunta fácil, mas merece ser estudada com carinho por aqueles que desejam conhecer a Acupuntura em sua plenitude, seja através de uma Pós-graduação ou de uma formação Técnica. Os interessados na acupuntura devem saber que ambas as formações são apenas conjunturais (sobrevivem devido a um desconhecimento geral, ou interesses parciais, sobre a grandiosidade dessa Ciência) e que não retratam a necessidade ideal de apreensão plena desse conhecimento.

Sendo assim, termino com um chamado aos profissionais envolvidos no processo educacional, sejam educadores ou pesquisadores, sejam estudantes: primemos por uma formação sólida e consistente, sem prescindir dos fundamentos desse Saber transdisciplinar e sem esqueceros mais nobres preceitos da Ciência, como a busca livre pelo conhecimento e a coragem para enfrentar o desconhecido, sem as amarras dos dogmas científicos e suas certezas engessadas.

Pedro Ivo é professor da Escola Nacional de Acupuntura, ENAc.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

ano do tigre



         

        Todos los años el Año Nuevo Chino se celebra en la segunda luna nueva tras el solsticio de invierno boreal. Este año comienza en la noche del 13 al 14 de febrero.

       Según el zodiaco chino, el tigre representa el poder y la autoridad, y la capacidad de resolver los conflictos internos y externos llevándolos a la armonía. El tigre se caracteriza también por ser un signo protector, cálido, amoroso, independiente y libre, también fiero. Tiene que ver con la capacidad de comunicarse y relacionarse socialmente con éxito, ya que tiene carisma. Como autoridad, es capaz de conciliar posturas opuestas, encontrando un punto de equilibrio y acuerdo.
     

        Según algunas escuelas de medicina tradicional china y artes marciales, el tigre se asocia a los pulmones, la sequedad y el metal. Los pulmones son maestros de la energía, y del Qi que nos nutre a través de la respiración. En algunas escuelas de artes marciales, se relaciona al hígado, con el viento y la madera. El hígado es maestro de la armonía, el gran general que almacena la sagre, la distribuye y deja libre las vías de paso de la sangre y la energía vital.

      Este año que entra vendrá con retos que pondrán a prueba nuestra valentía y capacidad de lucha, favoreciendo los proyectos nuevos. Un ciclo favorable para las actividades relacionadas con la comunicación, la infancia, los movimientos ecológicos, el activismo social y económico, las leyes, la política, los deportes, el espectáculo, las artes y el liderazgo.


     Sin duda un buen año para el movimiento, el cambio, la novedad y curiosidad. 






         Os deseo un feliz y abundante año del Tigre!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010


O Saber Tradicional da Medicina Chinesa e a Ciência Convencional


Seria possível analisar o esoterismo da acupuntura tradicional, mas não a cientificidade da acupuntura médica? (parafraseando Latour, 1994:92)

1. As Duas Grandes Divisões

A tentativa aqui será a de importar-exportar as Duas Grandes Divisões (a la Latour, 1994), a ocidental/ interior (entre nós, natureza e sociedade), e os outros/ exterior (entre eles e suas naturezas/sociedades misturadas) e, assim, causar um desconforto epistemológico, pelo menos, na construção do estudo sobre duas óticas-teorias conflitantes, no campo do conhecimento e na política, que permeiam uma mesma prática, a Acupuntura. Começo, então, citando um trecho de Jamais Fomos Modernos que melhor explica as ditas Divisões:

A Grande Divisão interior explica, portanto, a Grande Divisão exterior: apenas nós diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a cultura, entre a ciência e a sociedade, enquanto que todos os outros, sejam eles chineses ou ameríndios, zandés ou barouyas, não podem separar de fato aquilo que é conhecimento do que é sociedade, o que é signo do que é coisa, o que vem da natureza como ela realmente é daquilo que suas culturas requerem (...) Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as coisas são quase coextensivos. Em Nossa cultura, ninguém mais deve poder misturar as preocupações sociais e o acesso às coisas em si. (Latour, 1994:99)

Na esfera da Acupuntura, especialmente no Brasil onde passamos por um processo crítico de conflito entre as categorias interessadas na regulamentação dessa profissão - seja com atuação independente (como nos Projetos de Lei que tramitam no Senado e na Câmara dos Deputados), seja como uma especialidade exclusiva dos Profissionais da Saúde já regulamentados -, toda essa formulação parece-me muito pertinente e, inclusive, essencial para ajudar a pensar sua história recente e sua atual configuração no cenário nacional.

De um lado, a Ciência Convencional exibe hoje uma parafernália de explicações sobre a cientificidade da acupuntura - cientificidade essa bastante contestada no meio acadêmico e nos “laboratórios” (à maneira de Latour) da própria medicina oficial – com seus actantes[2] (leia-se endorfinas, cortisol endógeno, etc) que solucionariam qualquer dúvida, qualquer discordância e dissolveriam como mágica-ciência a idéia propagada por tanto tempo, pelos próprios cientistas, de charlatanismo (esse que é tão severamente combatido e que já foi, não há muito tempo, o substantivo que albergava a prática da acupuntura) e celebrariam assim, com as méritos da descoberta, a chegada da Acupuntura à modernidade. Sobre essa afirmação, desenvolverei um aparte, com a ajuda das idéias trabalhadas por Latour em Ciência em Ação, em especial sobre a noção de translação e as táticas desenvolvidas pelos construtores do fato em ação.

Do outro lado, ainda entre "as representações da natureza mais ou menos distorcidas ou codificadas pelas preocupações culturais dos humanos, que os preenchem por inteiro, e apenas por acidente percebem (...) as coisas como elas realmente são[3]" se encontra a Medicina Chinesa e seus milênios de “equívocos” que agora se esvairão, inevitavelmente, segundo as intenções dos profissionais interessados, sob os auspícios da ciência oficial.  Lancei mão dessa afirmação recheada de cinismo para expor algo mais sério: estamos diante de um tribunal da razão (latour, 2000:293) e, portanto, talvez seja apropriado, como recomenda Latour, a inversão dos resultados dos julgamentos de irracionalidade e, assim, subverter as regras do jogo, questionando a origem dos juizes e expondo as testemunhas  – o que desenvolverei mais adiante..

Separadas as duas concepções, acho pertinente alertar sobre o terreno pedregoso por onde caminha atualmente a Acupuntura e seus profissionais e, por isso mesmo, qual a atual configuração dessa prática no Brasil. Existem atualmente, como citado anteriormente, Projetos de Lei que visam regulamentar a prática da Acupuntura como uma profissão independente (não entrarei nas minúcias, as quais foram exaustivamente trabalhadas na dissertação) e que estão sofrendo grande pressão dos Conselhos de Medicina, por um lado, e das demais Profissões da Área de Saúde interessadas (Fisioterapia, farmácia, biomedicina, psicologia, etc), por outro, os quais foram já beneficiados com a Portaria 971 que autoriza a prática da Acupuntura “multiprofissional” no SUS (Sistema único de Saúde). Pois bem, é sabido que para que uma prática seja considerada médica e, desse modo, seja categorizada como especialidade, há a necessidade de comprovação científica por parte dos interessados. Nesse ponto resgato a caixa-preta Latouriana e as incertezas do construtor de fatos.

(vale ressaltar que ainda que o uso dessas ferramentas conceituais possa parecer forçado, afirmo que simplesmente elas repousam no meu quase-sujeito-objeto – no meu estudo exponho a dificuldade de delimitação precisa entre o pesquisador e o pesquisado – como um orvalho renovador numa manhã em que, porventura ou por descuido, eu tenha deixado meu trabalho sob a intempérie[4])

Sobre a construção de certezas, Latour lançou mão do conceito de translação como "a interpretação dada pelos construtores de fatos aos seus interesses e aos das pessoas que eles alistam” (Latour, 2000: 178) e, assim, traçou um caminho com suas táticas para sair de um estado de incertezas até tornar-se indispensável (idem, pág. 197). Na realidade da legitimação da Acupuntura no Brasil e nas palavras do próprio coletivo médico, “o mecanismo de ação da acupuntura tornou-se científico” (Revista Paulista de Acupuntura), a partir do momento em que a necessidade de comprovação científica, segundo os ditames vigentes, passou a ser um imperativo do Conselho Federal de Medicina, o qual, até então, negava veementemente e, inclusive, perseguia os Acupunturistas. A partir da aceitação interna da acupuntura, começou a luta pela exclusão dos profissionais não-médicos[5], numa clara tentativa de “tornar invisível o desvio" (tática 4 , p192) ou, dito de outro modo, a Acupuntura tradicional.

            Seguindo o raciocínio, acho adequado entrar com a caixa-preta de explicações sobre os mecanismos científicos da acupuntura - por isso mesmo chamada “científica” e atualizada como outra acupuntura, a técnica em sintonia com a modernidade – e explicitar seus caminhos fisiológicos duramente forjados nas redes[6] da tecnociência[7]. Assim sendo, transcrevo ditos mecanismos de confirmação do fato científico, explicitados pela SMBA (Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura):
Pesquisas demonstram que a acupuntura estimula terminações nervosas livres mielinizadas do tipo II e III nos músculos, enviando sinais para o sistema nervoso central, onde são liberados peptídeos endógenos semelhantes à morfina (endorfinas). Estes neurotransmissores causam analgesia bloqueando a propagação dos estímulos dolorosos para o córtex cerebral,e, consequentemente, impedindo sua percepção pelo cérebro. No SNC, o estímulo da acupuntura vai promover a analgesia mediante atuação em três níveis distintos: medular, mesencefálico e hipotalâmico. Neste último, a acupuntura vai ativar o eixo hipotálamo-hipófise, promovendo a liberação de beta-endorfina na corrente sangüínea e no LCR. Por sua vez, a beta-endorfina age sobre diferentes partes do cérebro e medula espinhal de modo a bloquear a passagem do estímulo doloroso. Um dado importante é que a liberação de beta-endorfina está correlacionada numa base equimolar à produção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), já que os dois têm um precursor comum. Assim, para cada mol de beta endorfina produzido, ocorre a liberação de um mol de ACTH, que vai atuar sobre o córtex da supra renal causando a liberação de cortisol. Neste fato, pode estar a explicação para a atuação da acupuntura nos processos inflamatórios da artrite e no broncospasmo associado à asma. O cortisol endógeno é liberado em quantidades muito reduzidas e finamente reguladas evitando assim os efeitos colaterais da terapia com corticóides. A nível do mesencéfalo, são neurônios da substancia cinzenta periaquedutal que vão liberar endorfinas e estimular neurônios do trato descendente dorso lateral para produzir serotonina e norepinefrina, inibindo deste modo o impulso doloroso a nível medular. O terceiro nível de atuação da acupuntura é a medula espinhal, onde interneurônios da substancia gelatinosa liberam dinorfina e bloqueiam o impulso doloroso que se propaga pelas fibras aferentes nociceptivas (página da SMBA, mecanismos de ação da acupuntura)[8].

Conhecidas as explicações “científicas”, vale lembrar que as indicações da Acupuntura (inclusive as propagadas por esse mesmo coletivo e pela OMS) em muito superam a mera analgesia, aqui tão festejada, e vão na direção de um sistema de cuidado integral do ser humano e não-humanos (para não perder a oportunidade de manter o linguajar latouriano) como explicitado pela própria Portaria 971: “A Medicina Tradicional Chinesa caracteriza-se por um sistema médico integral” (grifo meu).
2. A inversão dos resultados dos julgamentos de irracionalidade
“Quem são os acusadores, quais são suas provas, quem suas testemunhas, como é escolhido o júri, que tipo de prova é considerada legítima" (Latour, 2000:304)
Decido expor dois casos clínicos e suas duplas interpretações, uma sob a égide do pensamento convencional e outra sob os critérios tradicionais, à semelhança de Latour, pra inverter a noção de irracionalidade proferida sobre a Acupuntura Tradicional por parte da ciência oficial e, assim, desconstruir, ou pelo menos desestabilizar, esse sistema de “crenças oficiais” que insiste em menosprezar a ciência milenar chinesa.
CASO CLÍNICO 1 
Uma mulher de 45 anos chega para uma consulta de acupuntura, em um momento de “desespero”, sofrendo de “dores de cabeça crônicas e insuportáveis”. Na avaliação, relata que veio como última esperança encaminhada pelos próprios médicos, os quais não sabiam a causa (depois de inúmeros exames) e já não mais recomendavam o seguimento do tratamento com morfina, por seu caráter fortemente aditivo. Relatava também a pouca "fé" no tratamento com acupuntura, por ter sido submetida, anteriormente, a um tratamento de “acupuntura médica”, sem sucesso. Começado o processo de avaliação peculiar da MTC, a senhora estranhou a quantidade de informações que estavam sendo colhidas, a análise da língua, a leitura demorada dos pulsos, as perguntas sobre sistemas aparentemente distantes da “cabeça” (digestão, menstruação, sonhos?, histórico pessoal, emoções!!!!, alimentação, trabalho, ....) e todas as questões, que em todo seu histórico, nunca haviam sido levantadas. Rendeu-se, sem mais alternativas.  O acupunturista explica para senhora que ela passa por um “Padrão de funcionamento” específico: Deficiência do Xue do Gan (parcamente traduzido como deficiência do Sangue do Fígado) com ascensão do Yang do Fígado, devido à união entre problemas menstruais antigos (mascarados com medicamentos), alimentação inadequada, rotina estressante, pouco descanso, atividade mental excessiva e emoções não trabalhadas. O acupunturista também enumera seus problemas antigos e mostra a relação entre esses e o problema atual, como a falta de acuidade visual (ligada à esfera funcional do Gan) mascarada com os óculos, a tontura e a laberintite, todas manifestações do mesmo Padrão (ver anexo 1). No primeiro momento, a Mulher não entende muito bem as relações entre ditas causas e manifestações com sua dor de cabeça, porém segue o tratamento e alcança um “potencial de harmonização” do organismo, depois de 10 sessões de acupuntura, cuidados na alimentação e exercícios de “transformação emocional”, típicos da MTC. Ao relatar o caso de "cura" para seu médico convencional, o mesmo se surpreende com os resultados, porém insiste na “irracionalidade” das explicações.

CASO CLÍNICO 2

Um senhor de 50 anos chega ao ambulatório de um Hospital sofrendo de fortes dores estomacais. O médico, após breves perguntas e sem examiná-lo, pede alguns exames e, ao recebê-los, constata que o senhor está com a bactéria Helicobacter pilori. Sendo assim, prescreve os antibióticos adequados e dá alta para o senhor. Ao cabo de 10 dias o senhor está curado. Um mês depois, o mesmo senhor chega ao ambulatório de acupuntura com os mesmos sintomas e é submetido ä avaliação da MTC. Ë constatado um padrão de Fleuma-Fogo no Estômago, decorrente, entre outras coisas, de uma dieta rica em laticínios e carnes, ansiedade e consumo de alimentos condimentados. Além das sessões de acupuntura, o senhor recebe recomendações alimentares e é estimulado a incorporar atividades lúdicas e caminhadas ao seu dia-a-dia.

A escolha desses dois casos clínicos visa expor, ainda que de maneira parcial, o abismo entre dois sistemas médicos igualmente válidos, porém regidos por racionalidades opostas e, nem por isso, excludentes.

3. Para concluir
O encontro com Latour, a esta altura de meus estudos, parece trazer-me um ar de incertezas mais que fatos. Parece inundar-me com um novo sopro de inquietações e expectativas conceituais, não tanto pelo que assimilei, e sim pelo que posso, abertas as comportas, vir a assimilar. Fica então um texto não-conclusivo prenhe de possibilidades.....

BIBLIOGRAFIA
LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997.
              CARRARA, Sérgio. Uma Tempestade Chamada Latour: a Antropologia da Ciência em Perspectiva. Physis: Ver. Saúde Coletiva, Rio de janeiro, 12 (1): 179-203, 2002.
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Coleção Trans. Editora 34. Rio de Janeiro, 1994.
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução de Ivone C. Benedetti. Editora UNESP. São Paulo, 2000.



[1] O termo tradicional é aqui preservado atendendo uma terminologia já consolidada no meio da Acupuntura. Vale a pena lembrar, não obstante, que o tradicional na MTC (Medicina Tradicional Chinesa) assume contornos mutantes como o próprio pensamento taoísta, berço dessa Medicina e de grande parte das disciplinas científicas que brotaram no decorrer dos últimos cinco milênios na Civilização Chinesa.
[2] Nos termos importados do livro Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora, de Latour, 2000..
[3] LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 1994, pág. 98.
[4] Comentário seriamente inspirado pela crítica Uma Tempestade Chamada Latour: a Antropologia da Ciência em Perspectiva, de Sérgio Carrara.
[5] Terminologia usada pelo coletivo médico para designar os outros profissionais de saúde e os acupunturistas tradicionais e execrada por esses últimos.
[6] “a palavra rede indica que os recursos estão concentrados em poucos locais – nas laçadas e nos nós – interligados – fios e malhas” (Latour, 2000:294)
[7] Para a união entre as palavras ciência e tecnologia. (Latour, 2000: 53)
[8] As palavras em negrito são de minha responsabilidade.


Pedro Ivo, professor da Escola Nacional de Aupuntura, ENAc.


Agradecimentos especiais a José Jorge de Carvalho e Guilherme Sá