sexta-feira, 24 de julho de 2009

acupuntura no ocidente


A Integração dos Dois Sistemas no Ocidente


Guido Palmeira


A acupuntura é apenas uma das técnicas terapêuticas que compõem um conjunto de saberes e procedimentos culturalmente constituídos, e dos quais não pode ser dissociada. Além das agulhas, a medicina tradicional utiliza ervas, massagens, exercícios físicos, dietas alimentares, e prescreve normas higiênicas de conduta. Sua lógica é a mesma que orientou toda a vida social da China, no período em que foi desenvolvida: o calendário agrícola, as festas coletivas, os princípios de comportamento social, as regras de etiqueta no trato com as autoridades, a religião, a música, a arquitetura... Os princípios teóricos a partir dos quais as doenças são entendidas, classificadas e tratadas são os mesmos que servem para entender, classificar e lidar com as coisas do mundo', a natureza, o espaço e o tempo. (A este respeito ver: Granet, 1968).


Pretender que a eficácia de um saber que, segundo Cai Jing Feng, "tem controlado as maiores epidemias de doenças infecciosas na história da China", deva-se a que a introdução de agulhas, em determinados pontos, tenha como conseqüência a liberação de mediadores bioquímicos que interferem no fenômeno da dor; e que o sucesso obtido pelos chineses com a acupuntura durante dois mil e quinhentos anos de desenvolvimento seja fruto apenas da acumulação de observações empíricas, é fechar os olhos ao saber tradicional, é descaracterizá-lo, é optar por uma 'cegueira etnocêntrica'.


Embora os autores orientais considerem que a política de integração entre os dois sistemas, praticada na China desde 1949, tenha permitido um grande desenvolvimento não só na atenção à saúde do povo chinês, como da própria medicina tradicional — e o surgimento das técnicas de anestesia cirúrgica com acupuntura nos anos cinqüenta testemunha que têm razão —, a recíproca pode não ser verdadeira.


Nos últimos quarenta anos, o oriente desenvolveu novas técnicas terapêuticas, associando o saber milenar com o saber e a técnica ocidentais. Ao ocidente, que não domina o saber tradicional, — ao contrário, o nega — restou a pobre e limitada perspectiva de procurar esclarecer, com seus próprios recursos teóricos, os mecanismos de ação e os efeitos de uma técnica oriental isolada em uma situação específica, a dor. No ocidente, a procura da cientificidade da acupuntura, ao contrário de esclarecer (ou legitimar) o saber que lhe dá sentido, tem sido a busca da confirmação da hegemonia da ciência médica, a possibilidade de fazê-la capaz de explicar os efeitos até então enigmáticos das agulhas.


Se o crescimento da aceitação da acupuntura no ocidente pode ser o reflexo da crise da medicina científica, e se a crise da medicina ocidental se identifica com a crise de seu paradigma positivista; então os estudos 'científicos' da acupuntura pouco poderão contribuir para a superação dessa crise, enquanto insistirem em negar a possibilidade de uma medicina, de uma ciência de dois mil e quinhentos anos, que tem a sua lógica própria, diferente daquela da ciência ocidental.


É possível (quiçá provável) que a maior colaboração que o oriente possa trazer a medicina ocidental não esteja na sua técnica, mas no seu saber, nos conceitos a respeito da natureza e da causalidade das doenças, na sua visão holística do ser humano, na valorização da tendência à autocura inerente ao organismo, no significado do "equilíbrio" que se busca com a terapia.


No entanto, para se ter acesso ao saber tradicional, será preciso compreender os seus princípios, poder perceber claramente o Yin e o Yang no mundo, e a possibilidade do Tao (3); será preciso reconhecer na natureza, no céu e na terra, as seis energias e os cinco elementos, aprender a distinguir, no exame do paciente, onde está o frio e onde está o calor, onde estão as insuficiências e onde estão os excessos.


Para se ter acesso ao saber tradicional, será preciso admitir a possibilidade de que estas categorias possam se organizar em um sistema coerente cuja lógica, que orientou tanto a ordenação biológica quanto a ordenação social da China, durante a maior parte dos últimos vinte e cinco séculos, deve ser apreendida não só pelo estudo da medicina, como pela compreensão da religião, da filosofia, dos costumes, enfim, da história e da cultura da civilização chinesa.


Guido Palmeira é Pesquisador do DEMQS/ Ensp/ Fiocruz


Trecho do estudo "Acupuntura no Ocidente" publicado no Cadernos de Saúde Pública. Para leitura completa acessar: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X1990000200002&script=sci_arttext

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